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A vida é um grande manto impermeável de mistério, exposta num painel miraculoso que corre mais rápida que o tempo e as sensações dos sentidos, para alcançar as estradas do seu extremo mais infinito. Normalmente são raras as pessoas que conseguem novos caminhos no trilhar iluminado pela limpidez da luz, que emanada por força do divino, sem antes se curvarem como o girassol se curva de acordo com o movimento do sol, sempre em busca de maior luminosidade. E do berço ao túmulo, ao findar essa luminosidade, no último raio do sol, para sempre, nos espera o velório e o cemitério. Realidade fantástica que poderia ceder lugar à fantasia de um dia, tornar-se revivificada no cemitério, num pôr do sol. Logo no lugar mais triste do mundo, para a realização da última experiência humana? Assim, de tanto mistério, como memorialista de Russas, narrei inúmeras histórias de enigmas sensacionais, de casos famosos dos mais espetaculares, de fatos pitorescos dos mais incríveis, de alegrias terríveis e de tristezas inimagináveis. Muito além de figuras curiosas que se despedem de pessoas queridas, estranhas e até desconhecidas. E em Russas, existe essa figura curiosa e peculiar que acompanha todos os enterros do município. E muitos, de outros lugares, até da capital cearense. E que, sempre está presente nas ocasiões em que a morte é o principal assunto do momento. Sua escolha deixaria perder o sentido da vida, como um comerciante simples, que admira os pobres, por ser diferente de tantos outros, que preferem banquetes, festanças, bacanais e orgias, ao invés de seguir enterros? A morte que representa a tristeza, seria uma espécie de alegria para o sentido de nossa vida? Que prazer de euforia oferece uma casa, onde o pranto a encobre de luto? Misteriosamente, essa figura celebrizou-se por acompanhar enterros e rezar pela alma do irmão falecido, encomendado-a a Deus. Por que não escolhe festa de aniversário, de casamento, ou comemora a sua vida esbanjando a fortuna? Num cenário único, prefere passar horas num velório lamentando a morte de um amigo, um conhecido ou de um estranho, enfrentando a tristeza dos familiares do morto, com todos os sentimentos e dificuldades dos enlutados. Onde muitos cortejos fúnebres, que levam ao cemitério para enterrar o morto, a maioria dos defuntos, de tão pobres, não recebem dos amigos, sequer uma flor natural, nem mesmo uma humilde coroa artificial para enfeitar o cortejo. Mesmo assim, embora que o enterro não seja muito concorrido, com toda estima, como a esperar diante dos mistérios da vida-morte, faz-se presente a curiosíssima figura do comerciante Erivaldo Leite de Pontes, o conhecido Leleo. Como se a presença, em todos os cortejos fúnebres, superasse o momento triste de dor inexplicável, para a felicidade dos presentes, sem fugir do luto, ignorar a tristeza e nem abandonar o morto. Leleo sabe noventa por cento de quem são os túmulos que perpetuam no Cemitério Bom Jesus dos Aflitos, de Russas. E se tem a notícia de que morreu alguém, ele vai à casa do finado para acompanhar o enterro. Se tiver um, dois, três ou vários, no mesmo dia, acompanha o esquife, carregado pelos outros ou por suas próprias mãos. Da casa do morto ou da funerária, rumo ao campo-santo, deixando o caixão funerário com o cadáver até ao pé da cova, para o sepultamento, quando reza pela alma do falecido, encomendado-a a Deus. Leleo possui empresas e comércios por todo o vale do Jaguaribe, considerado um dos maiores criadores de gado leiteiro da região, com várias fazendas. Carismático, humilde e simples, descontraído e cativante acima de tudo, muito bondoso, trata o rico e o pobre de forma respeitosa, como um homem do povo, sem ferir reputações de quem quer que seja. E quem lhe pede qualquer ajuda, ele atende. Atende ao pobre e ao rico com profunda transparência, não tem nada de escondido. Um dia, quando surpreendido na saída de sua casa, por quatro bandidos, Leleo disse: “olhe, eu sou um homem simples, e não tenho nada a perder. Sou um homem simples por causa da classe pobre que me ajudou. Podem levar o que quiserem. O povo é quem diz que sou um homem importante em Russas. E pelos pobres, até hoje estou nessa posição.” Celebrizou-se assim o Leleo, por inúmeras ações de bondade, caridade e respeito com os mais humildes. Que com os olhos de Deus ilumina o preciosismo valor da vida, com tantas emotividades, ultrapassa a história de um fazedor de milagres, ao desafiar a curiosidade da existência, seguindo enterros. Isso lembra o funeral do Marcos Maia, no Cemitério Parque da Paz, em Fortaleza, ao acompanhar o seu esquife. De súbito, Leleo botou o braço por sobre o meu ombro, seguindo assim, o enterro, falou: “Dr. Maranhão, olhe para trás.” Sem entender o que queria dizer com aquelas palavras, olhei vagarosamente para observar muita gente acompanhando o funeral. E ainda, com o braço por sobre o meu ombro, indagou: “você viu?” Sem entender nada, perguntei: “O que Leleo?” E ele indagou: “Se a riqueza do Marcos Maia vem acompanhando o seu enterro?” No momento, lembrei da frase que o poeta Quintino Cunha deixou no seu epitáfio: “O Padre Eterno, segundo conta a Escritura Sagrada, tirou o mundo do nada... e eu nada tirei do mundo.” A vida é um belo cântico de pássaros, apesar das dificuldades que enfrentamos e da tristeza que sentimos, nada levamos desse mundo, nem mesmo o medo da morte.
.Originário de Russas – CE. Formado em Direito pela Universidade de
Fortaleza – Unifor, advogado militante da Comarca de Fortaleza, e
romancista. Livros publicados: Deusurubu, Admirável Povo de São Bernardo
das Éguas Ruças. Romances: A Dança da Caipora, Os Mortos Não Querem
Volta e O Hóspede das Eras. Membro da ARCA – Academia Russana de Cultura
e Arte.
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