COLUNISTAS / AIRTON MARANHÃO (IN MEMORIAN)

A mulher do velho comunista

Airton Maranhão (in memorian)

22/10/2014

Enviar por e-mail
Imprimir notícia

Como representante autêntico da moral e do cinismo interpessoal, sensível, simples, irônico e crítico em delírios dissimulados a narrar a própria trajetória, com o sutil senso comum de galhofeiro, que não desgasta a tinta da melancolia de satírico, surgia pela rua a caminho de sua residência. Aquele ser frágil e insignificante, sem saber por que, de repente transforma-se num bicho absurdo e aterrador. Tudo somente ocorria ao adentrar na esquisita rua, que fazia caminho a sua residência. Porque, misteriosamente, o seu corpo arrepiante começava a liberar gases estranhos, nauseabundos e nocivos e, para deixar todos os moradores do vilarejo amedrontados, com inexplicáveis mudanças existenciais. As pisadas que eram lentas e quase silenciosas, transformavam-se nas pisadas de um superdinossauro, a sacudir a terra. Que só se ouvia o som das chaves fechando as portas, e janelas batendo, e vozes em sibilos pedindo silêncio. Como se todos já soubessem que era o franzino e pequeno velho Comunista, que passava por aquela rua. Dali por diante, não se ouvia mais relinchos de jumentos, cantar de galos e nem apito dos vigias das casas dos coronéis. E nem dos botecos, ouvia-se o tagarelar dos bêbados e dos boêmios. Todas as radiolas paravam de tocar Nelson Gonçalves. Todos os botecos fechavam suas portas. Ninguém mais ficava na rua. O vento sonoro sumia com os pássaros noturnos, com os ratos e os com os gatos. Os cachorros no alvoroço dos latidos sumiam em correria, como chicoteados por algum louco. Nenhum andejo, mendigo e notívago se aventurava seguir o mesmo caminho do velho Comunista. E nenhum vira-lata teimava em passar mais naquela rua. Quando o Comunista voltava para casa, no sereno da boca-da-noite, tudo a sua frente, fazia finca-pé com medo do tão franzino pedaço de homem. Ninguém sabia do mistério aterrizador daquele simples Comunista. Nem o mais valente, cruel e desalmado assassino, tinha coragem de enfrentá-lo, nem mesmo na covardia do revestrés. A burra-de-padre quando via o velho Comunista, passava o resto da noite dando voltas ao redor do cemitério e da igreja. Todos os bem-te-vis tinham medo dele. Pai-de-chiqueiro tremia igual a ganzá de cego, e sumia em disparada. Velhas cachimbeiras se benziam boquiabertas. Até a aragem passava rápida pelas árvores, que paralisadas, não balançavam uma folha. O silêncio era total. Somente suas pisadas como os gigantes Nefilins, que co-habitaram a Terra nos tempos passados, estremeciam o chão. Nenhum mama-na-égua se aproximava para pedir fósforo para acender o cigarro. Nem um perigoso assassino, para cravar-lhe um punhal nas costas. Nem os valentões Bom-Bom, Biró-do-Papa-Sebo, Chico da Laudiêta, Goía, Gastura, Fonfom, Luiz da Ensebada, andavam por aquela rua. Todos temiam a passagem do Comunista. Policial Amador, pistoleiro Nilson Cunha, Cabo Guedes, Catanã, famigerado bandido fugitivo da Antiga Cadeia Pública de Fortaleza. O destemido Chagas do Couto, viado João Guilherme, Sapatão Bunda-de-Couro, macho-feme Sucupira, agigantado Joaquim Féliz, todos temiam o Comunista. Que não usava peixeira, revólver e nem punhal. Apenas, vez por outra assoviava baixinho caminhando com as mãos nos bolsos, dedilhando o rosário. Para ele não existia lengalenga com puxa-facas, molecagem com vizinhanças, nem desaforo para com os seus princípios morais. E até a lua da meia-noite, com a imensa cor de sangue, desfalecia amarelecida, com a passagem do Comunista por aquela rua. Até a luz do poste, vez por outra, piscava com medo do simples homenzinho. E ali, por onde passava de nenhuma casa se ouvia resmungo, tosse, choro de criança, gemido. Nem a voz perdida de algum bêbado, de um louco. Todas as luzes das casas se apagavam e não se ouvia uma palavra, nem de algum provocador. Nem armador gemia, nem gato miava. Nem latido de cão se ouvia naquela noite. E nenhum morador teria coragem de olhar pelas frestas das portas, das janelas ou do fim dos becos, para vê-lo passar. Até o velho lorel do Tio Joel, à manivela, que passava a noite com o motor ligado, com o Comunista ao chegar-se, o catatau de ferrugem estremecia como cachorro após o banho, e de repente, estancava nos requebros. Todos temiam quando o Comunista passava naquela rua. Que ao se aproximar de um poste, a luz tremia e se apagava de calafrio. E podia olhar para o céu, que não mais havia uma estrela. Até os vaga-lumes apagavam as suas luzes na escuridão. Os vigias das bodegas corriam para outras ruas. Quando vinha um carro com a luz acesa, em sua direção, de súbito, parava, dava marcha-ré e sumia cantando pneus. Nenhuma coruja piava. Silêncio se fazia completo. E quando se aproximava do alpendre de sua casa, a luz acendia. E logo sua mulher surgia envolta num camisolão, para abraçá-lo, mas, ao contrário, o velho Comunista, ali, mesmo, no meio da rua, como um louco, metia a peia na pobre desgraçada. E os vizinhos que tentavam socorrê-la. eram surrados impiedosamente. E os valentões que apareciam em socorro dela, o Comunista botava para correr. Todo mundo apanhava. E o inferno queimava as labaredas. Quando de repente, após a um vento frio, em meio aos ciscos, num funil de um redemoinho, a mulher do Comunista, desvendava o mistério do insignificante homúnculo. O terrível castigo da mulher do padre, que de tão bela, transformava-se na mula-sem-cabeça, e saía a vomitar fogo pelas ventas, relinchando, para amedrontar o povo do vilarejo.

Airton Maranhão (in memorian)

.Originário de Russas – CE. Formado em Direito pela Universidade de Fortaleza – Unifor, advogado militante da Comarca de Fortaleza, e romancista. Livros publicados: Deusurubu, Admirável Povo de São Bernardo das Éguas Ruças. Romances: A Dança da Caipora, Os Mortos Não Querem Volta e O Hóspede das Eras. Membro da ARCA – Academia Russana de Cultura e Arte.

Airton Maranhão (in memorian)

DEIXE O SEU COMENTÁRIO

Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não representam a opinião da TV RUSSAS. É vedada a inserção de comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes ou violem direitos de terceiros. TV RUSSAS poderá retirar, sem prévia notificação, comentários postados que não respeitem os critérios impostos neste aviso ou que estejam fora do tema da matéria comentada.

REDES SOCIAIS

  • Facebook
  • Twitter
  • Soundcloud
  • Youtube

©2009 - 2024 TV Russas - Conectando você à informação

www.tvrussas.com.br - Todos os direitos reservados