As escolas são, em geral, o ponto de partida para quem sonha acordado. Antes de estudar para ser alguém, um número incontável de meninos e meninas madruga com o sol. Saem de casa com o dia em meia luz, sobem em veículos e deixam o vento ainda frio no sertão lavar o rosto. Numa mão, segura firme o caderno. Com a outra, a própria vida. Nem todos conseguem segurar com a mão até o final. A chegada à escola já é o próprio sucesso para quem ainda tem uma vida a percorrer. Porque o primeiro aprendizado é sobreviver ao ir e vir.
Quando conhecemos Jarlane Lima Gonçalves, no Riacho Fundo, localidade no município do Crato, no Cariri, ela já tinha voltado para casa com o caderno sem um risco a mais, a lapiseira guardada no estojo do mesmo jeito de quando saiu de casa cinco e meia da manhã.
Desceu o morro pelo caminho de areia e pedras, pulou um córrego de esgoto e ficou aguardando passar o transporte escolar. Que não veio mais uma vez. Após uma hora de espera, sobe novamente para casa. Foi assim nos cinco dias úteis da semana anterior e naquela outra segunda-feira em que nos encontramos.
A prefeitura municipal já não pagava havia mais de dois meses. Quando completou os 60 dias sem dinheiro, os motoristas decidiram que deixariam de rodar. Sobrou para Jarlane, que não vai para aula alimentar o sonho de ser professora. Mas naquela semana ao menos mil crianças deixaram de ir à escola no Crato.
"Eu digo a ela, você pegue o carro que vem da feira, que quando chegar aqui a gente paga", diz a mãe, Adelina Gonçalves, colocando um pingo de esperança naquela rotina. Não aguenta mais que dois dias pagando o carro "de horário", que vai e vem da feira no Centro da cidade e passa pela escola, em Santa Fé, e depois Riacho Fundo, onde mora a menina. Porque tem Jarlane mais o irmão Jeferson, que mesmo só com a vontade da mãe também veste a farda para ir à escola.
Paga-se pouco pela passagem, "mas é dinheiro". É o jeito esperar. Nos períodos em que a prefeitura quita os atrasados e os motoristas seguem a rota, as crianças do Riacho Fundo sobem no transporte escolar: uma camioneta com vários bancos de madeira montados na carroceria e envolvidos em cima e nos lados com varas em que, no teto, está sobreposta uma lona de plástico. Fica mais fácil entender chamando-o de "pau de arara".
E difícil admitir que, quando amanhece o sol, o galo canta, e os pássaros, um monte de meninos e meninas se amontoam imprensados em pequenos poleiros feito passarinhos presos numa gaiola ambulante a caminho da escola.
A precariedade de transportes escolares, em absoluta maioria terceirizados, é presença unânime nos estados do Nordeste, ainda que uns mais, outros menos. Manhã, tarde e noite, esses veículos levam e trazem pessoas com livros e cadernos. Ônibus que deveriam estar condenados à sucata, caminhões e camionetes abertas, vans cuja engrenagem grita de exaustão e até motocicletas transportam centenas de milhares de alunos no Ceará.
Roteiro
Durante uma semana, viajamos por todas as regiões do Estado, incluindo as divisas com Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte. Vários caminhos unem e desunem casa e escola. Trilhamos. A pergunta que carregamos debaixo do braço era: por que é tão árduo o direito à educação?
Mas logo no começo demos de cara com mais: por que falta dignidade a essas tão jovens pessoas humanas? Fora da estrada, mas sem sair do caminho, investigamos as contas públicas de quase duzentas prefeituras. As perguntas que daí também surgiram faremos nos três dias desta série "(des) Caminhos da Escola", publicada de hoje até sexta-feira, dia 26.
Esperança não falta para mães como Maria Dolores, em Ipueiras. Sua tensão diária se mede das 6h30 às 12h. É partida e chegada de Sofia. De outro lado, a desilusão, dizendo o mínimo, se mede nas 24 horas de cada um dos sete dias da semana de Clécio da Silva, em Aracati. Soube de um acidente fatal envolvendo transporte escolar no centro da cidade e correu para ver.
Nesta semana, faz quatro anos que sua filha Mônica Kelly saiu para a escola e nunca mais voltou para casa. Desde então, não tem um dia que falte ao cemitério levando flores para sua "princesa". O mesmo que deverão fazer os pais de Laís Eusébio de Oliveira, de cinco anos. Há três semanas, a criança morreu ao ser arremessada para fora do transporte escolar cuja porta não fechava no município de Porteiras, sul do Estado.
Antes que se pense em fatalidade, um fato: todos os dias, em quase todos os municípios cearenses, crianças e adolescentes escapam da morte nas estradas - não se sabe até quando. No direito à educação, além do desafio de um aprendizado de qualidade está o de acessibilidade. Enquanto algumas letras gritam do alfabeto: A de acidente, B de banal, C de corrupção, D de descaso...
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