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Escola clama por equilíbrio entre conflitos e reinvenções

Diário do Nordeste

17/11/2014

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Estampo noticiários policiais com certa frequência. A maioria das manchetes conta casos extremos de violência que, à minha revelia, acontecem nas minhas dependências: "Aluno é espancado por colegas em sala de aula", "Estudante é preso dentro de escola pública", "Professor é ameaçado de morte". Esses casos reforçam a gravidade do meu problema por meio dos relatos repetidos por professores, pais e até mesmo por policiais. Embora seja observadora onipresente, pouco me dão voz. Eu, escola pública imersa em comunidade de alto risco, peço licença para contar também a minha história.

Sinto como se pairasse no tempo. Pareço cada vez mais distante da época destes alunos que hoje povoam meus corredores, com seus pés ligeiros e mãos quase sempre grudadas em algum aparelho eletrônico. Vivo um lapso de anos e, talvez por isso, seja tão difícil para mim compreender o que eles buscam nos meus pátios com seus olhos cada vez mais agitados.

Quando exatamente as vozes ficaram tão afiadas, despejadas contra quem lhes ferir o pensamento? Não sei. Vez por outra, enquanto tento entender o que mudou nos meus meninos, ouço um burburinho caótico dentro de mim. Olho pra dentro e assisto a cenas que se repetem com frequência nos meus corredores: ameaças, ofensas e até o extremo de tapas que, no fim das contas, parecem doer na minha própria estrutura. Quase tudo aparentemente a troco de nada.

Penso que estou, de alguma forma, quebrada - a maioria dos pedaços fora de lugar. Minhas salas, antes consideradas quase sagradas, agora são palco para violências físicas e simbólicas que, silenciosas, tomam aqueles que me habitam. Professor, aluno, funcionário: todos mergulhados em um problema que já não sei mais como dar conta. Um problema que às vezes, eu mesma constato, escapa de mim.

Assustados

Observo o entorno dos muros que me delimitam, e as casas parecem se amontoar, umas coladas nas outras. Depois de tanto tempo sem olhar com atenção para o lado de fora, percebo que muita coisa mudou. Vejo os alunos deixarem meus portões de ferro assustados, girando a cabeça com insistência para conferir se há algum perigo em volta.

Só consegui entender o que acontece ao meu redor quando ouvi uma menina loura dizer baixinho à colega, enquanto deixava a sala do 9º ano: "Eu me sinto segura aqui na escola porque não devo nada a ninguém nem tenho envolvimento com droga. Mas hoje é difícil se sentir segura nesse mundo. É a lei da selva aqui nesse bairro: um matando o outro pra sobreviver".

Drogas

Quando ouvi suas palavras, compreendi o que motivou a morte de Humberto (nome fictício) tão perto de mim. O menino tinha olhar doce, mas de vez em quando cruzava meu pátio com olhos alterados pela droga. Perdi as contas de quantas vezes o vi mentir para a professora: "Deixei de usar", ele dizia, dando de ombros. Para além de meus muros, ainda pude vê-lo algumas vezes assaltando para manter o vício.

Humberto me deixou em uma de minhas esquinas. A verdade é que mal vi o que aconteceu do lado de fora. Soube de sua morte quando meu porteiro, atraído pela confusão que se formava na esquina, viu o menino de 17 anos que estudava aqui desde pequeno esticado no chão. Um grupo tentava tirar-lhe a cabeça, uma forma de ganhar status no bairro. A aglomeração de pessoas impediu.

Quando a história ganhou meus corredores, muitos arquearam os ombros como quem se acostumou a perder amigos para a morte prematura. Eu me encaixei no espanto: pela frieza banal e pela perda de um dos meus. Derrota minha?

Essas violências externas, que alcançam o extremo, têm invadido minhas estruturas sem que eu tenha tempo para organizar qualquer bloqueio. Se dentro de mim tudo parece conturbado, o que dizer do espaço que me rodeia? Estou edificada entre territórios dominados por grupos distintos. Pequenos espaços renomeados em um bairro sitiado pelo tráfico. Diariamente, vejo gente matar ou morrer por poder, por droga, por nada.

Meu aluno mudou, o bairro onde estou mudou. Eu mudei? As alterações agora me parecem pontuais. Quando a violência externa me invadiu as salas, levando minhas cadeiras e computadores em roubos, ganhei grades nas portas. A mudança, porém, parece ter dado aos meus alunos um novo sentido: estão eles sendo cada vez mais vitimizados?

Rabiscos

Eu, que sempre sonhei libertar pelo conhecimento, pareço prendê-los simbolicamente na minha arquitetura. Eu, que lhes devo atenção e amparo, sequer percebi quando os rabiscos deixaram as portas do meu banheiro para povoar, em cortes profundos, a pele dos estudantes. Estamos ambos mutilados.

Não posso me eximir da minha responsabilidade: há também violências sendo produzidas dentro de mim. Há meninos agredindo e apelidando colegas, desafiando as hierarquias. Há autoridades exaustas, algumas mais preocupadas em manter-se autoridades do que em transmitir, de fato, valores morais. E assim vão se multiplicando as microviolências que tornam meu cotidiano um fardo.

Outro dia, ouvi um professor comentar o alerta da pesquisadora Luciene Tognetta durante uma palestra na cidade: "Violências brutas apenas têm se repetido. O que tem aumentado são as microviolências, aquelas que ninguém sabe porquê o aluno bate, não copia, atrapalha".

Apesar das pernas cada vez mais agitadas palmilhando meu piso, sinto meus alunos cada vez mais tristes. Noto algo no olhar deles que mistura raiva com impotência. São meninos que, afogados na cultura do ouvir e do pensar nos erros que cometeram, pararam de falar. Vivem suas contradições apenas por dentro. Sem dizer o que pensam e sentem, deixam a consciência e a reparação escapar quando se deparam com o conflito. Como posso me adequar aos tempos de hoje, organizando minhas estruturas físicas e educacionais para formar meus alunos para a vida?

OPINIÃO DO ESPECIALISTA

Aprendizagem tem que fazer sentido ao aluno

Quem nunca ouviu alguém falando: "Estas crianças de hoje só faltam nascer falando"? É verdade que as crianças mudaram. Mas será que a forma como somos educados está ajudando esses meninos a superarem as ondas de violência atuais? Talvez (o ensino) não esteja adequado a esses meninos e meninas que são de fato diferentes. (...) Enquanto nós estivermos enclausurados nos conteúdos escolares de química, matemática, ciências e português, sem viver os cotidianos e fazê-los relacionar seus conflitos com os problemas sociais maiores, não vamos conseguir avançar.

Claro que esses meninos são reflexos da sociedade, que também tem uma maneira abrupta de resolver conflitos. Esses alunos vivem violências cotidianas em família cujos pais também não sabem resolver conflitos. Os pais também muitas vezes passaram por uma educação autoritária que é tão perigosa quanto a permissividade excessiva que se tem hoje. Os dois lados dão ao sujeito uma falta de sentido para a vida, e aí o sentido que eles vêm buscando está na violência e nas drogas.

Se a sociedade passa por isso, se os alunos e os pais não conseguem resolver conflitos, alguém precisa se responsabilizar por isso. Não é assumir a responsabilidade porque sobrou para a escola, mas a instituição escolar é formadora por direito e por dever. As escolas que têm parceria com a comunidade são as que mais vêm dando certo. O diálogo com os pais é fundamental. O problema é que a família muitas vezes está perdida também.

As incivilidades cotidianas que se manifestam como indisciplina são sinais de que esses meninos muitas vezes estão entediados por livros distantes da sua realidade, por uma aprendizagem sem significado. E aí nós culpamos esses adolescentes como se a violência deles viesse de casa, mas às vezes essas indisciplinas são características de espaços em que o professor apenas dá aula.

Ninguém suporta ficar horas sentado escutando uma coisa que às vezes ele até já sabe ou que na verdade ele não vê sentido. Até porque a escola hoje não é mais o lugar (absoluto) do conhecimento. O conhecimento está dado também na internet. Estou dizendo que o lugar do conhecimento não é mais na escola? Claro que não. Mas aí é que está: a escola é o lugar das relações entre os conhecimentos. Os meninos trazem conhecimentos para relacionarem e produzirem conhecimento novo.

Luciene Tognetta
Educadora e especialista em psicologia escolar

Bastidores

O arquétipo da estrutura escolar narra a história
Esta série de reportagem foi pensada para dar voz a diversos atores da comunidade escolar que, não raramente, silenciam quando o assunto é a violência que os envolve diariamente. Cada página, uma voz: da escola, do aluno, do professor, dos pais, do mediador, do Estado. Para compô-las, foram consultados 10 professores, 6 alunos, 2 especialistas em Educação, 3 mediadoras, 4 pais e 1 promotor de Justiça. Na primeira página, o arquétipo da escola vira personagem para refletir sobre seu entorno.

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