Maior fabricante de armas da América Latina, a brasileira Forjas Taurus vendeu armamento a um conhecido traficante iemenita que enviou as armas ao seu país em guerra civil, em um ato de violação a sanções internacionais, de acordo com documentos judiciais que a Reuters teve acesso.
As vendas foram negociadas e fechadas, segundo denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal à Justiça Federal do Rio Grande do Sul, apesar de a empresa saber das restrições de negócios com o iemenita Fares Mohammed Mana´a, listado pela ONU como um dos maiores traficantes internacionais de armas.
Os procuradores acusaram em maio dois ex-executivos da Taurus de enviar 8 mil pistolas e revólveres de uso exclusivo das forças policiais para Mana´a, que atua na região do Chifre da África, também conhecida como península Somali, há mais de uma década.
As armas foram supostamente enviadas pela Taurus para Djibuti e redirecionadas para o Iêmen por Mana´a, de acordo com documentos judiciais.
Na lista de países sob embargo da Organização das Nações Unidas (ONU) desde 2014 e também do governo dos Estados Unidos, o Iêmen, localizado no Oriente Médio, na extremidade sudoeste da Península Arábica, vem sendo desde o início do ano passado castigado por uma guerra civil brutal, que já matou milhares de militares e civis, com os rebeldes houthis apoiados pelo Irã desafiando o governo aliado da Arábia Saudita.
Devido ao embargo, o Iêmen não pode receber armas de nenhum porte. O conflito deixou, nos últimos 18 meses, ao menos 10 mil mortos no país, incluindo cerca de 4.000 civis, segundo a ONU.
A ação penal, que foi aberta pela Justiça Federal do Rio Grande do Sul e corre em segredo de Justiça, afirma que os ex-executivos da empresa Eduardo Pezzuol (gerente de exportação) e Leonardo Sperry (supervisor de exportação) fecharam em 2013 a venda de US$ 2 milhões em armas para Mana´a. Em 2015, negociavam uma segunda entrega, desta vez de 11 mil pistolas e revólveres, quando foram surpreendidos por uma investigação da Polícia Federal.
"Se a autoridade policial não tivesse surpreendido a parceria comercial entre a Taurus e o traficante, novas encomendas certamente seriam feitas", diz o texto da denúncia feita pelo Ministério Público. A denúncia cita tabelas encontradas em computadores da Taurus que mostram pagamentos periódicos de Mana´a à empresa desde 2013.
O caso pode prejudicar a Taurus, sediada no Rio Grande Sul, que é uma importante fornecedora de armas para as polícias e as Forças Armadas do Brasil, além de ser uma das cinco maiores fabricantes de pistolas e revólveres para o mercado dos Estados Unidos, onde vende três quartos de sua produção. O Brasil é o quarto maior exportador mundial de armas de pequeno porte.
A empresa em si até agora não foi denunciada. O Ministério Público concentra o processo, por enquanto, nos dois ex-executivos da empresa que comandaram as negociações.
A denúncia do Ministério Público, no entanto, deixa claro que os procuradores veem responsabilidade direta da Taurus, que teria usado Mana´a e suas empresas como um distribuidor no Oriente Médio e na África, para outros países além do Iêmen, incluindo Sudão, Sudão do Sul e Etiópia.
Procurados pela Reuters, os executivos não responderam aos e-mails. O advogado dos acusados, Alexandre Wunderlich, afirmou, também por e-mail, que a denúncia do MPF "não revela a verdade dos fatos" e que "todos os atos que são objeto do processo foram praticados no âmbito exclusivo da empresa e amparados na legalidade".
Não quis, no entanto, tratar do assunto em detalhes alegando que o processo está em segredo de Justiça. A Taurus afirmou à Reuters que não é parte do processo e "tampouco foi formalmente acusada".
Por e-mail, disse que "está acompanhando o processo na condição de interessada, uma vez que adotou postura colaborativa e está auxiliando a Justiça na elucidação dos fatos" e que, "considerando que o processo está tramitando em segredo de Justiça, a companhia não está autorizada a fornecer quaisquer detalhes sobre o caso".
Os então executivos da Taurus chegaram a trazer Mana´a ao Brasil, de acordo com os documentos do Ministério Público, em janeiro de 2015, com a justificativa de uma visita à fábrica da empresa no Rio Grande do Sul.
Sperry e Pezzuol pediram ao Ministério das Relações Exteriores, em nome da Taurus, uma carta-convite para Fares Mana´a. O documento foi negado sob a alegação de que o "empresário" vinha de um país com restrições para transações comerciais.
Os procuradores acusam, na denúncia, a Taurus de ter então tentado conseguir um falso passaporte do Djibuti para Mana´a, em uma tentativa de dar mais veracidade à história criada para o traficante, mas o esquema não funcionou. Ainda assim, o iemenita entrou no Brasil em 21 de janeiro de 2015, usando outro documento com nome e data de nascimento falsos, segundo a denúncia.
Incluído na lista da ONU como traficante internacional de armas em 2010, Mana´a é acusado de suprir armas para o grupo extremista somali Al Shabaab e para piratas da região. De acordo com o relatório da ONU, o iemenita negocia armas na região do Chifre da África, também conhecida como península Somali, e na Europa Oriental desde 2003.
O iemenita teve, entre outras sanções, ativos congelados nos Estados Unidos e tem uma pena de banimento de viagens. "Não há como a Taurus e seus funcionários alegarem desconhecimento dos feitos atribuídos a Mana´a, pois Leonardo Sperry declarou (em depoimento) que é praxe da Taurus pesquisar na internet sobre pessoas convidadas ao Brasil", diz a denúncia do MPF.
O caso foi descoberto pela Polícia Federal em setembro de 2015. Os dois executivos foram então chamados para depor e confessaram as negociações com Mana´a. Logo depois do depoimento, Sperry enviou um e-mail a Mana´a informando que as negociações para a segunda venda teriam que ser suspensas "devido a recentes contatos com as autoridades brasileiras".
Em 4 de novembro de 2015 foi realizada uma operação de busca e apreensão na Taurus e foram levados computadores e documentos. Nesses computadores, a Polícia Federal e o MPF encontraram dezenas de correios eletrônicos que confirmam as negociações e mostram, inclusive, que a empresa sabia das restrições de comércio com Mana´a e o Iêmen e buscou alternativas para driblaras sanções internacionais.
Em um dos e-mails, Pezzuol afirma que "caso a Taurus decida vender ao Iêmen, o caminho parece ser através de Mohammed Mana´a", que abriu uma nova rota por meio do Djibuti, pequeno país do nordeste da África, onde, exatamente do outro lado do estreito de Bab al-Mandad, está o Iêmen.
"ENTREPOSTO FICTÍCIO"
De acordo com os documentos do MPF, há indícios que a relação da Taurus com o traficante vem desde 2007, vários anos antes dos primeiros relatórios da ONU apontarem que o iemenita estaria fornecendo armas ilegalmente para soldados na guerra civil da Somália.
Entre 2011 e 2012, as negociações teriam sido suspensas, com a entrada definitiva de Mana´a na lista traficantes internacionais de armas pela ONU e pelos EUA. É a partir daí que a entrega de armas a Mana´a passa a ser por meio do Djibuti e com laranjas de Mana´a tomando a frente do negócio.
"Em 14 de outubro de 2013, a Taurus obteve uma autorização prévia para exportação, número 788/2013, expedida pelo Comando Militar do Sul, de 8 mil armas para o ´Ministry of Defence and National Security´ do Djibouti", diz a denúncia. A autorização, segundo a denúncia, foi usada falsamente para enviar armas ao Iêmen.
"(Os executivos) se valeram de fraude para simular o destino real do armamento, bem como para ocultar o envolvimento do também denunciado Fares Mana´a, uma vez que se tratava de país sob embargo internacional e pessoa sancionada pelas Nações Unidas", diz a denúncia.
Em março de 2015, uma nova leva de armas foi preparada para ser enviada a Mana´a usando a rota do Djibuti, segundo os procuradores. Um analista de exportação da empresa de logística Amazon Freight Forwarders, responsável pela entrega, pediu repetidamente por e-mail os contatos de quem receberia a carga no Djibuti, mas sem sucesso. Todas as informações repassadas à empresa eram de pessoas no Iêmen.
"Djibuti era um ´entreposto fictício´ para exportação", diz a denúncia. "Restou claro como a empresa Taurus se valia de notório traficante internacional de armas, que faria a triangulação das mercadorias para outros países, especialmente para o Iêmen", diz a denúncia.
As duas empresas de fachada de Mana´a, Itkhan e Al Sharq Fishing and Fish, seriam usadas para negociar o armamento enviado pela Taurus, segundo a denúncia.
No final de maio deste ano, o juiz Ricardo Borne, da 11ª Vara Federal de Porto Alegre, aceitou a denúncia contra Pezzuol e Sperry e determinou a inclusão de Mana´a na lista de procurados da Interpol, além de pedir o levantamento das contas bancárias da Forjas Taurus para possível posterior sequestro de valores.
Os dois executivos são acusados, assim como Mana´a, de tráfico internacional de armas, pelo artigo 18 da lei 10.826, pela qual é proibido "importar, exportar, favorecer a entrada ou saída do território nacional, a qualquer título, de arma de fogo, acessório ou munição, sem autorização da autoridade competente".
O juiz também determinou a expedição de ofícios para que sejam notificadas as embaixadas dos Estados Unidos, Arábia Saudita, Egito, além do Ministério das Relações Exteriores e ONU, revelando as investigações contra a empresa por venda ilegal de armas.
A decisão, no entanto, foi suspensa dois dias depois por uma liminar do desembargador João Pedro Gebran Neto, da 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª região, a pedido da Taurus. A empresa alegou que a expedição de ofícios poderia trazer "prejuízos econômicos" para a companhia.
Até agora, no entanto, a ação penal se concentra nos dois executivos que, de acordo com seus currículos na rede LinkedIn, deixaram a Taurus logo depois de serem denunciados pelo MPF. Ambos trabalham atualmente em uma empresa de cerâmicas em Santa Catarina.
Mana´a, que foi governador, entre 2011 e 2014, do distrito de Sa´dah, um reduto dos rebeldes houthis, no Iêmen, não foi encontrado para responder às acusações. A Justiça brasileira divulgou um edital de citação, usado para intimar e processar Mana´a à revelia.
A venda ilegal de armas para um traficante e para um país sob sanção da ONU pode trazer enormes prejuízos econômicos à empresa. A própria ONU pode estabelecer sanções contra a Taurus, de acordo com a legislação internacional adotada pelo Conselho de Segurança da organização.
Além disso, a empresa possui uma fábrica nos Estados Unidos -Taurus International Manufactoring Inc-, que pode vir ser afetada se for acusada de descumprir sanções impostas pelo governo norte-americano.