COLUNISTAS / AIRTON MARANHÃO (IN MEMORIAN)

O mendigo bunda-de-couro

Airton Maranhão (in memorian)

08/07/2015

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Há muitos mistérios em Russas que nunca foram desvendados. Coisas estranhas e bizarras que se classificam numa categoria especial do fantástico e do inusitado, como criaturas surgidas do nada e sumindo sem explicação, origem e destino. Como no caso da aparição do miserável esmoler aleijado, que só se movimentava arrastando a bunda pelo chão, devido à proteção de uma couraça artesanal. Que ao impulsionar o corpo, por força sobrenatural, arrastava as nádegas pelo chão, protegidas por uma espécie de frauda feita de couro de boi. Aquele bicho esquisito e fantasmagórico transformou-se na criatura mais assustadora que já apareceu na cidade de Russas. Que de tão assombrosa, inacreditável e absurda, poderia imaginar que seria apenas mais uma estória de trancoso. Mas não! Grande foi o susto dos russanos quando souberam que a maldição dos infernos encontrava-se à beira dos abismos do Serrote da Tapera, arrastando a bunda a caminho de Russas. E quando num cenário de assombro, mistério e terror, a visual criatura sombria apontou na entrada da cidade; aquela aparição causou medo e calafrio. Ainda mais quando uma cachorrada feroz tentava acuar o bicho apocalíptico. Com a sua imagem macabra, que refletia a sua sombra maléfica a transfigurar a criatura sinistra e mal-assombrada, por trás de uma gargalhada de amedrontar os seres mais desassombrados, como os mais bizarros pesadelos, que assustavam toda São Bernardo das Éguas Ruças. E de tanto causar medo, a cidade só não ficou vazia e fantasma, devido à notoriedade assombrosa da coisa abominável. E logo uma multidão de curiosos passou a seguir a coisa medonha, que se arrastava movendo a bunda pelo chão. Ouvia-se o espocar de trovão, o bater asas de urubus, trote de touro zebu e canto da seriema na lagoa Caiçara. Enquanto o aleijado com as suas gargalhadas sardônicas de tão horrendo e enigmático animal sobre-humano, sem poder afastar a cachorrada infernal que o seguiu até o mercado, alguém gritou: "Mendigo Bunda-de-Couro". E assim foi batizado pela alcunha de mendigo Bunda-de-Couro. E sem revelar a sua origem, demonstrou com inteligência, a exímia capacidade de contador de vantagem. Em dizer que a sua mãe foi uma das mulheres mais bem-sucedida de sua terra natal. Por ter castrado um lobisomem, encantado o Curupira e surrado a Mãe-d'água. Para deixar os russanos assombrados com as inúmeras e incontáveis histórias de mistério e terror. Que como contador de vantagem, recebia esmolas. Sempre a vangloriar-se de que a sua terra tinha ficado famosa, no cenário de aparições de objetos voadores não-identificados, de vultos fantasmagóricos e duendes cavalgando nos unicórneos. A aparição daquela criatura pelas ruas de Russas assombrava até os loucos que fugiam com a sua presença. Para assim criar uma série de indignação e mistério. De onde veio aquele aleijado arrastando a bunda pelo chão, protegida com uma espécie de moldura de couro, com enorme cinta entrelaçada na cintura e nas coxas, como frauda de bebê? Quem seria realmente o esmolambado pedinte que mendigava com a voz de trovão, horripilante, descabelado e banguelo, de olhar triste e fantasmagórico como dos moribundos? Quem seria mesmo aquele santelmo demônio de riso sarcástico e de olhar sombrio, com rastro de vaga-lumes na escuridão das noites? O que ocultava dentro daquela mordaça de couro que deixava o quadril enorme e a bunda pesada, como quem arrastava chumbo, ouro, prata dentro da couraça artesanal? O Bunda-de-Couro era realmente um mendigo assustador. Muitos comentavam que não tinha nádegas. E que dentro daquela vestimenta de couro, guardava moedas que recebia de esmola. Uma curiosa tentou pegar na duvidosa bunda, mas ficou paralisada e perplexa diante do olhar furioso do mendigo de mal augúrio. À noite ninguém sabia por onde o forasteiro mendicante sonhava ao dormir. Pela manhã, das sombras da neblina ou da poeira das estradas, surgia o lendário Bunda-de-Couro para pedir esmola no mercado. Mas numa tarde tranqüila, quando de um inesperado tumulto, apareceu uma multidão enlouquecida numa gritaria espantosa, a correr pelas ruas da cidade, num tropel desenfreado com medo de um touro horrendo. Arrastando-se apressado pela calçada, o aleijado mendigo Bunda-de-Couro, que não podia correr, sem entender o motivo da gritaria e o que estava acontecendo, assombrou-se ao ver o monstro não castrado dobrar a esquina. E ao ser repentinamente ameaçado pelo furioso touro, que já baixava a cabeça com os chifres apontando para exterminá-lo, gritou: - Valha-me Deus! E ao perceber que não escaparia da chifrada, de um pulo, levantou-se de súbito desatrelando as fivelas que o prendiam à couraça, e em desembestada correria, fez finca-pé, para de uma bundacanasca mergulhar nas águas do Araibu, a surgir na outra margem e desaparecer sem explicação. Enquanto a corrente d'água arrastava o touro, balseiro abaixo, nas ruas e calçadas, meninos, mulheres e velhos brigavam para apanhar as moedas do mendigo, que caíram da estranha vestimenta, quando tirara do corpo para correr com medo do touro feroz. E até hoje, com tantas conversas dispersas, ninguém sabe quem era o enigmático mendigo Bunda-de-Couro, que surgiu de forma extraordinária nas terras de São Bernardo das Éguas Ruças.

Airton Maranhão (in memorian)

.Originário de Russas – CE. Formado em Direito pela Universidade de Fortaleza – Unifor, advogado militante da Comarca de Fortaleza, e romancista. Livros publicados: Deusurubu, Admirável Povo de São Bernardo das Éguas Ruças. Romances: A Dança da Caipora, Os Mortos Não Querem Volta e O Hóspede das Eras. Membro da ARCA – Academia Russana de Cultura e Arte.

Airton Maranhão (in memorian)

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