COLUNISTAS / AIRTON MARANHÃO (IN MEMORIAN)

A reza da velha Rosa do Rosário

Airton Maranhão (in memorian)

14/04/2015

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As situações trágicas da vida sempre têm o lado cômico, sombrio e bizarro, acompanhadas da insignificância da solidão dos corcundas horrorosos e da hipnotizadora beata russana, que sem qualquer conhecimento do hipnotismo, soro artificial dos magos da Pérsia e dos ioguis indus, hipnotizava as crianças da minha rua, ao ensinar a reza e catecismo. Quando muito, por longo espaço de tempo, sem brilhar diante dos passos misteriosos da beatitude, não encontrava felicidade para desfrutar a presença de Deus. E sem base científica, brotava pelo destino da vida, caminho retilíneo, que somente findava na grandeza da autobiografia de terror e calafrio dos malefícios encantatórios, que utilizava a catimbozeira velha Rosa do Rosário. Hipnotismo cheio de mistérios que induzia às crianças a acreditar em Deus para odiar o diabo. E isso acontecia em Russas, com a católica hipnotizadora velha Rosa do Rosário, que morava na Rua Monsenhor João Luiz, num casebre horripilante, à sombra do centenário tamarineiro, na circunvizinhança do cata-vento americano do Vicente Leite. Quando, para o conhecimento seguro da fé em Deus, e do ódio eterno para com o diabo, a estranha beata, em voz alta, ensinava o catecismo para a meninada daquela rua. No afirmar em prantos que a Virgem Maria sempre aparecia numa visão de luzes, sobre o pé de tamarindo, para santificar o seu casebre assombroso, enquanto o diabo balançava os galhos para afugentar a santa. E em meio à terrível ventania, a meninada acompanhava a reza da católica. "- Pai nosso que estais no céu/santificado seja o teu nome..." Daí um maligno mentiroso e mais que presepeiro da Rua Monsenhor João Luiz, jogava pedra no telhado do casebre da velha Rosa, como aviso que a pelada do Beira-Rio, ia começar. A papa-hóstia enfurecida, respondia: "vá jogar pedra na mãe, seu feladaputa!" E a meninada suava e tremia de medo, enquanto a fervorosa corola praguejava impropérios com cachimbo na boca e a cabeça envolta no turbante preto. Depois calmamente, continuava a reza. "... venha a nós o teu reino/seja feia a tua vontade..." Mas de repente, na fúria dos demônios, ao arrastar uma vara que usava como cajado, como imitação de flamejante tridente, corria para o terreiro, a procura do atirador de pedras. "Vá jogar pedra no pri... da mãe, feladaputa." O praguejar pavoroso parava a ventania, silenciava os pássaros e o canto da sereia no riacho Araibu. E a murmurar continuava a reza: "na terra como no céu..." Quando a meninada acompanhava chorando baixinho. E inesperadamente, como coisa do satanás, outra chuva de pedra caía em cima do casebre. E a beata endoidava: "Galalau safado, cão vermelho com rabo e chifres, ainda vou lhe dar uma surra de pimba de boi, seu canalha." Naquele tempo a fé católica dependia de crença popular, no propagar a maldade do lúcifer nas mensagens satânicas, sem explicação, como Deus fez o mundo. Toda criança temia o fogo do inferno. Por isso aprendia a rezar para ir para o céu. Ouvindo a beata contar sobre a enganadora e trapaceira serpente do Jardim do Éden, que seduziu Eva a comer o fruto proibido. E que o diabo, que vivia sentado ao lado de Deus, por querer ser mais sábio que o Criador, foi expulso do Céu. Para surgir em Russas, envolto no manto das trevas. Daí, tudo que aparecia de ruindade na terra de São Bernardo das Éguas Ruças, era coisa do demônio. Virgem pecadora era identificada como a serpente do Genesis, ou como o Satanás. Tudo que fosse maligno era coisa de Belzebu, besta-fera, Ferrabrás. Até o Nego Leudo, fotógrafo do lambe-lambe, ao aparecer vestido de terno branco, chapéu branco, sapato branco e gravata vermelha, a beata Rosa do Rosário, praguejava: "é o demônio do Zé Pilintra." Se um afogado era resgatado do riacho Araibu, era o Mefisto. Se o Comunista xingava o padre Pedro, era o cão infernal. Tudo era coisa do diabo. Zé do Canário, gafieirista do bordel da Ceguinha, era aparição demoníaca. Chica Doida em desembesto pelas ruas era satanismo. Qual menino que não tinha medo de lobisomem, alma, mula-sem-cabeça, papa-figo, homem-do-saco e do Satanás? Relâmpago, ventania, pé-de-vento, trovão, era coisa do diabo. Moça sem hóstia, ladainha, bendito e comunhão, era o demo. Satanás surgia em tudo. Na flor do jardim, no canto do pássaro, no choro da criança, no sonho das freiras. Ninguém escapava da reza da velha Rosa. "Reze nem que seja pro demônio!" A papa-hóstia detestava menino com mimo debaixo da saia da mãe, com medo de cocorote, beliscão, chulipa e tabefe. Esse, sem qualquer meritório de prestígio, apanhava de relho cru no espinhaço. "- Pai nosso que estais no céu/santificado seja o teu nome..." A corola açoitava os meninos tremendo na boca o cachimbo do Saci-Pererê. Não adiantava magia, exorcismo, demonologia, anticristo, isso era loucura. Polícia não intervia, os pais não imploravam e padre não impedia dos meninos apanharem como jumento. "Quem não quiser ir pro inferno, tem que rezar. Rezar é o único caminho para ir pro céu." E todos rezavam. Todos sonhavam com o céu. Não adiantava caminhar no abismo da discórdia, queimar Judas Iscariotes, que vendeu Jesus por trinta denários. Criar atalhos desconhecidos para viver às portas do arrependimento da expiação, sem encontrar o céu. Melhor era seguir o lume do facho da velha Rosa do Rosário. "- Pai nosso que estais no céu/santificado seja o teu nome/ venha a nós o teu reino..." E a chuva de pedra caia do céu. "Vá jogar pedra na mãe, feladaputa.../... santificado seja o teu nome...!" E os meninos apanhavam como jumentos.

Airton Maranhão (in memorian)

.Originário de Russas – CE. Formado em Direito pela Universidade de Fortaleza – Unifor, advogado militante da Comarca de Fortaleza, e romancista. Livros publicados: Deusurubu, Admirável Povo de São Bernardo das Éguas Ruças. Romances: A Dança da Caipora, Os Mortos Não Querem Volta e O Hóspede das Eras. Membro da ARCA – Academia Russana de Cultura e Arte.

Airton Maranhão (in memorian)

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