COLUNISTAS / AIRTON MARANHÃO (IN MEMORIAN)

Padre Valério e o santo caçote

Airton Maranhão (in memorian)

01/12/2014

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Identificar o comportamento da existência da vida e mistérios dos seres estranhos, malditos e famosos que viveram em Russas, sem monumento consagrado à memória, arquivo nem panteão algum, como marco identificador do passado histórico das proezas, danações e dos feitos monumentais, sem saber onde findaram os restos mortais, tenho que preservá-los na memória universal, como marca num museu dessa inscrição, sem plaqueta, monumento ou esquife, para não soterrá-los no esquecimento. Como no caso do maquiavélico Caçote. Quem sabe o nome desse bizarro, energúmeno, microcéfalo bicho terrificante? Quando o policial Zilcar tocou fogo no Caçote, dentro do Quartel de Russas, foi que o analfabeto, insignificante, emblemático e diabólico ser, coberto de cicatrizes e com pouca inteligência, passou a ser visto em Russas, não como fera, bicho e demônio, mas como uma criatura humana. Embora com a sua magnitude gigantesca de atrocidades, peripécias e façanhas diversas de bicho assustador, que passaram a persegui-lo por toda a sua vida. Ainda mais quando esse vulto do passado, como uma espécie de idiota, santificado e pré-histórico, contava a sua história estapafúrdia. Olha padre Valério, vou crivar aquele viado com uma goiva e degolar com um machado, como Antônio Meireles fez com a mendiga Maria das Quengas. Olha padre, no dia que o Sucupira der psiu outra vez, arranco os trambeis daquele mariquinha. Vai dar rabiçaca para o Peru, para o Zé da Onça, vai se rebolar para o Carritel, segurança do Zé Nilo. Comigo é no tabefe, num tem negócio de mariquinha, não. Sou macho! E quando tomo uma talagada de cachaça, com tira-gosto de cangati, para sentar a mãozada no pé-do-ouvido dum mama-na-égua, para ficar estatelado, é daqui pra li. Gosto de ouvir é a bordoada! E para dar uma facada num viado, é só abrir o bico. E para roubar uma beata, é só cochilar na igreja. E quando chego melado em casa, chuto cadeiras, panelas e penicos. Acordo todo mundo! Até o cachorro vira-lata faz finca-pé. Sou pagão desmantelado e embuanceiro, não tenho medo de cadeia, de soldado, de padre nem de asilo. Vou dar uma pexêrada no Padre Valério, ele me expulsou das quermesses. Disse que não gosta de facínora. Eu gosto de fuampa desmiolada. Quem é esse facínora? Comigo, nada de cafuné, tirar espinha, hóstia, ladainha e bendito de beata. Eu gosto mesmo é de namorar no cabaré, para ouvir o Tabica imitar o Waldik Soriano. Pode cantar Tabica, que quero ver se o soldado Amador, o Cabo Guedes ou o padre Valério fecha o puteiro da Eufrozina! Vem padre, vem soldado Boca-Rica, vem Cabo Guedes! Caçota traz a cachaça do pé do pote. Tenho raiva de cachorro que dorme no pé da mesa do velório. Atiça a gafieira Zé do Canário! Queima raparigal! Arrocha Edilson Sanfoneiro! Tira esse peste daqui! Fico danado com vira-lata abanando a cauda, olhando para mim. Hoje dou uma facada numa fuampa! Sou ruim! Não tenho medo de nada. Pode vim qualquer um! No tabefe, na faca e de qualquer jeito. Sou o Caçote, com inimigos, mandingas e minhas rezas. Homem de palavra. Se eu disser que furo, furo até freira com a cabeça coberta de véu. Só respeito à professora Carlota. Padre Valério, pode puxar o seu 38, que amolo a minha faca e afio meu o punhal. Minha lazarina está entupida de chumbo. Você fala da Espingarda, mas as minhas irmãs Caçotas, são raparigas mais faladas ainda. Vez por outra sinto um encosto da fuampa do Farrista, no puteiro da Ceguinha. Detesto puta faceira. Cabo Guedes, soldado Boca-Rica e o padre Valério, dizem que não sou gente, sou o Demônio. Sou infernal, só não sou macho-e-feme. Ainda pego o padre Valério pelas bitacas e vou dar umas pexêradas nele, até espichar os cambitos. Dizer que sou doido, só porque troco marradas com carneiros e só porque brigo com cachorro dentro do mercado. Dizer que vim da puta que pariu. Que sou filho do cangaceiro Jararaca, do bando do Lampião. Que sou a praga do inferno, filho de doidivana. Quem é essa doidivana, é minha mãe? Vou quebrar o pau da venta do padre Valério, para nunca mais me atanazar. Eu vim mesmo foi da puta que pariu! Gosto de arruaça, patifaria e de encrenca. Vou matar aquele padre caga-raiva. Eu vou lá varrer a igreja, ser coroinha de padre, cantar bendito de novena! Vou roubar os santos da igreja. Não tenho medo de alma! Só porque roubei as laranjas do sítio do padre Valério, quer dizer que não vai rezar missa para minha alma? Se eu morrer, vou voltar mais infernal ainda. Deixe morrer, que ele vai ver marmota! Devia não ter salvado aquele desgraçado, quando virei à canoa com ele na enchente do riacho Araibu. Naquele dia virei santo. Meu de Deus, Caçote! Meu santo Caçote! Não me deixe morrer afogado! Você é um santo, Caçote! Você é um santo! Depois que salvei aquele peste com o amigo Nenô, ele gritou: Caçote maldito! Caçote você é o Demônio! Caçote você é o Satanás! Só não matei aquele peste, por causa do soldado Amador e do Cabo Guedes. Mas pedi a ele, padre quando eu morrer me leve num enterro daqueles que vi nos filmes do Marcondes Costas. Imagine o santíssimo Caçote num daqueles carros fúnebres que conduzia o esquife numa louvação de pompa, com coroas e flores decorando o caixão mortuário numa elevada plataforma sombria. Naquele carro fúnebre seguia o corpo do famigerado Caçote, para o Cemitério Bom Jesus dos Aflitos.

 

Airton Maranhão (in memorian)

.Originário de Russas – CE. Formado em Direito pela Universidade de Fortaleza – Unifor, advogado militante da Comarca de Fortaleza, e romancista. Livros publicados: Deusurubu, Admirável Povo de São Bernardo das Éguas Ruças. Romances: A Dança da Caipora, Os Mortos Não Querem Volta e O Hóspede das Eras. Membro da ARCA – Academia Russana de Cultura e Arte.

Airton Maranhão (in memorian)

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