COLUNISTAS / AIRTON MARANHÃO (IN MEMORIAN)

Tibira da Rita do Maneiro

Airton Maranhão (in memorian)

02/04/2014

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Se for na lua cheia que mais o lobo uiva, na lua nova é que acontecem as doidices. E foi numa dessas noites de lua nova, quando o relógio da Coluna da Hora, da Praça Monsenhor João Luiz, tocou doze vezes anunciando a meia-noite, e de repente, o sino da igreja matriz, como sinal de que havia morrido alguém importante na cidade, passou a repicar insistentemente, um dobre fúnebre. Os badalos daquele funeral amedrontaram os russanos. E ninguém mais conseguiu dormir. Quem seria que havia morrido? O povo acordado ficou no suspense. Mas o suspense daquela noite de nua nova, não tinha nada com montículo fúnebre, nem com túmulo, nem com mausoléu. O bicho apareceu com aquelas tenebrosas badaladas de coisas estranhas. Quando às margens do riacho Araibu começou uma cachorrada infernal. Briga de gato com cachorro. E não parecia coisa de fantasma. Por causa dos miados horripilantes dos felídeos, na zuadeira inquietante e assustadora da cachorrada à beira do Araibu. Ao ponto de se ouvir barulho de felinos correndo em louca disparada, por sobre os telhados das casas, pulando cerca e muros dos quintais. Num miado prolongado a rosnar murmúrios estranhos e silvos assustadores. A emitir balidos estridentes de agressividades defensivas, como gatas virgens, assustadas e ferinas, no cio. Era arrepiante! De início, parecia que os cachorros de Russas perseguiam os rapinadores da cidade. Para acuar um bicho que fugia apavorado. E o mais incrível, era que até bem-te-vi apareceu naquela noite. Era uma coisa absolutamente macabra, amedrontadora, tirânica e sinistra. Enquanto isso, numa balsa flutuante, conduzida pelo Zé do Canário, iluminada por um candeeiro, preso na vara de marmeleiro, o boêmio Tabica trajado de preto, descia pelo riacho Araibu, cantando músicas do Valdik Soriano. Os moradores da vila do Chico Franco, não tiveram nem coragem de olhar pelas gretas das portas, para ver o Tabica na balsa. Mas quando o boêmio percebeu o mal-assombro, disparou a nadar para a beira do riacho. E o Zé do Canário desapareceu nas águas escuras, para no Bardalask, contar a história do mal-assombramento ao coveiro Jabatão. Era uma noite de assombro inevitável. E por medo do mal-assombro, ou do mistério do outro mundo, as lamparinas do vilarejo do Chico Franco, num espanto, apagaram-se. Longe, os galos cantaram. E a escuridão encheu o céu de rasga-mortalhas. Era um acontecimento inexplicável. Coisa de bicho encantado ou de satanás em redemoinho. A escuridão reinou com o assombro da Mulher de Branco. Mas não era a Mulher de Branco, ela disputava em orgia, na sua cama, a virilidade de vários homens. Mas parecia que os cachorros da várzea jaguaribana, acuavam um lobisomem, uma Mula sem Cabeça ou uma Fera terrível. Era uma briga de australopitecus com monstros e demônios. A beira do riacho Araibu, virou um inferno. A cachorrada sem fim, cada vez mais aumentava os ganidos. Mas em Russas havia o Senhor dos Milagres, um curandeiro que não tinha medo de nada no mundo. Porque curava todo tipo de doença: tuberculose na espinha, arteriosclerose, loucura, varíola, paralisia infantil, epilepsia, gota e apendicite. Esse monstro miraculoso era o lendário macumbeiro Roseno, que morava naquela vila. E ali, praticava as suas feitiçarias. Roseno acendeu uma lamparina e abriu a porta da casa, a fim de fazer uma oração para benzer o bicho. Mas ao se ajoelhar com o livro de capa preta de São Cipriano na mão, uma ventania arrepiante apagou a luz da lamparina e jogou o mestre do macabro para a sala da magia negra. E um pé de vento fechou a porta. A cachorrada infernal inflamou mais ainda o medo, na escuridão. O assombro era imprevisível! Meu Deus! Nunca vi bem-te-vi cantar à noite. Mas os travessos bem-te-vis, aproveitando a ventania, entraram na vivenda do bruxo, e pegaram uma briga com os fantasmas daquela casa de feitiçaria. A moradia do macumbeiro, parecia lugar de aparição de mal-assombro. Havia gemidos de deuses, gritos de demônios e falatório de adultério. E os vizinhos ficaram aterrorizados com os ganidos dos cães acuando o bicho. O gemido das almas penadas e o mau presságio dos bem-te-vis, com os pertinentes cânticos de “Bem-que-te-disse... Bem-que-te-disse!” Nesse reboliço, a cachorrada seguiu rumo ao cemitério, atrás do bicho amedrontador. E de um casebre perto do cemitério, com alarido da cachorrada, surgiu a Mulher de Branco com um archote a aclarar o bicho maldito. Que a desvencilhar-se das mortalhas e exibir as vestimentas de molambos coloridos, Rita do Maneiro, no espanto, indagou: “Malavéia?” E o magricelo Malavéia, conhecido como Tibira da Rita do Maneiro, respondeu: “Sim, amor!” Quando a Mulher de Branco correu para fechar a porta da morada, para o Tibira não entrar, os rapazolas que estavam dentro, fugiram em louca correria. E os mexeriqueiros bem-te-vis, que têm fama de presepeiros, explodiram: “Bem-que-te-disse... Bem-que-te-disse... Bem-que-te-disse!” Por essa traição da Rita do Maneiro com o Malavéia, cachorros ainda acuam lobisomem à margem do riacho Araibu.

Airton Maranhão (in memorian)

.Originário de Russas – CE. Formado em Direito pela Universidade de Fortaleza – Unifor, advogado militante da Comarca de Fortaleza, e romancista. Livros publicados: Deusurubu, Admirável Povo de São Bernardo das Éguas Ruças. Romances: A Dança da Caipora, Os Mortos Não Querem Volta e O Hóspede das Eras. Membro da ARCA – Academia Russana de Cultura e Arte.

Airton Maranhão (in memorian)

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