COLUNISTAS / AIRTON MARANHÃO (IN MEMORIAN)

Nêgo Leudo – O Fotógrafo Lambe-lambe

Airton Maranhão (in memorian)

26/02/2014

Enviar por e-mail
Imprimir notícia

De personagens celebres como gênios de magia e encantamento particulares de mistério profundo, que fizeram parte do imaginário impenetrável dos fatos históricos de Russas, não poderia esquecer um profissional em extinção, pelo registro de suas imagens de fotografias gravadas nos vitrais do tempo. E por não ser famoso, ficou esquecido na memória do povo russano. Esquecido num passado semelhante a um sonho de uma incógnita e de poucas lembranças. A história desse fotógrafo, de uma profissão em extinção, impressionou a todos que conheceram o negro estranho, anônimo, de estatura mediana, cheio de marmota, pilhéria jocosa, metido a namorador. Que apareceu jogando bola pelo time do João Pequeno. Exibindo-se como jogador gaiato, que dava pezinho na bola ao redor do juiz. Que matava a bola no peito, de joelhos. Que gargalhava com as cambalhotas e acrobacias na comemoração dos gols que fazia. Que gentil a moda galã barato, mandava beijos para as moças que assistiam à partida de futebol. E que pelas ruas, com muita alegria, beijava a mão do padre, da freira e das crianças. Que com um rosário de contas azuis entrelaçado à mão esquerda, rezava para velho de espinhela caída, para mau-olhado da moça triste, para dordolhos das papa-hósteas, para tosse de cachorro doido de menino maluvido. O negro misterioso andava sempre com uma sacola de couro preta, pendurada no ombro, com fotos de atrizes famosas como Gina Lollobrigida, Eva Gardner e Marilyn Monroe. Além de fotos de visionários, santos, poetas, músicos, filósofos etc. Mas aquele negro estranho, que tinha medo horrível de alma do outro mundo, medo de filho da besta-fera, medo do monstrengo Zebio, medo do Zé Caluca, medo do horrendo Papangu, medo do Bicho-Pão e medo do Lobo Mau. Sem esquecer que gostava de dar cascudo, puxão de orelha e chulipa, nos bêbados e no Gata Valmir. E sem entender porque para a Chica Doida, para o maluco Comunista, para o Assis Doido e para a rapariga Eufrozina, mostrava a palmatória que sempre carregava na bolsa preta. E misteriosamente imitava o sorriso do espantoso Conde Drácula, o olhar do enigmático Rasputin, o andar macabro do monstro Frankstein e o ensaio gestual de Adolf Hitler. Sem entender que a arte da fotografia era a memória do passado, a imagem e encantamento do simpático e jeitoso estranho era um fotógrafo lambe-lambe, que logo passou a ser chamado de Nêgo Leudo. Quando fazia revelação de fotos com a sua máquina de lambe-lambe, encapuzado sob aquele pano preto, com uma caixa de madeira com lente apoiada num tripé. O que fez se popularizar através da tão estranha atividade profissional, batendo foto em praça pública, feira, mercado, colégio e até na Coaça de Russas. O fotógrafo Nêgo Leudo fez muito sucesso com o lambe-lambe, desenvolvendo o seu trabalho, na magia da fotografia com a câmara laboratório. Revelava fotos, quase instantaneamente, como um ilusionista que se orgulhava dizer que a marca da lente que usava era um milagre. E a água límpida que lavava a lente para revelar as fotos, buscava no orvalho das flores do jardim do Zé Delfino. Muitos russanos integraram ao acervo fotográfico do Nêgo Leudo, que sumiu no tempo. Para lembrar que com o seu lambe-lambe, Nêgo Leudo bateu foto do Zé Bolinha, tocando sanfona. Da moageira de Café do Macaibinha. Do Farrista cantando na bodega do Pedro Carneiro. Do Papa-Sebo, embriagado no Carne Assada do Bigodão. Do Zé Leudo, mecânico do padre Valério, quando consertava o motorzinho que acionava na bicicleta Goricke, do afobado vigário. Do relojoeiro Juju, que consertava o relógio da Coluna da Hora, da Praça Monsenhor João Luiz. Do misto do vereador Joel Correia Lima, com o seu time de futebol, no Araújo. Da mercearia do velho Moacyr na Av. Dom Lino, iluminada por um imenso farol, ao abrir as portas de madrugada. Bateu foto do Cabo Guedes jogando sinuca com o atleta Pinto. Bateu foto da tuba do Raimundo Adriano, compositor de música do bumba-meu-boi de dona Rosária. Bateu foto da Chica Doida batendo palma ao passar a cafuringa do João Farias. Do Carrossel do Antônio da Marta, que era impulsionado por Agostinho Cabeludo, Jabatão e Batente, que embriagados na correria a pé, embalavam o velho carrossel nas Noites de Festa. Bateu foto do José Martins Filho, cognominado de Nego Zeca, o Quartinha, que imitava o grito do Tarzan no cimo das oiticicas, à margem do rio Jaguaribe. Do conjunto do Campelinho de nome “Coqueiro Seco” com os componentes: Messia do banjo, Campelinho do clarinete, Concílio do Saxofone e o cantor Zericardo, que animavam os bailes da Associação Atlética e Cultura de Russas – AACR. Sem esquecer as campanas que o Nêgo Leudo fez com o seu lambe-lambe, ao ouvir as batidas das picaretas do Tarcísio Mendonça, caçador de botija, escavando o mal-assombrado casarão azul da velha Elisa, à margem da estada carroçável, no caminho do cemitério. Das fotos do tamarineiro da beata Rosa do Rosário, que nas sexta-feiras o fantasmagórico Macumbeiro Rozeno, fazia despacho rosnando em meio às rasga-mortalhas, balançando a copa da imensa árvore, à margem do riacho Araibu, onde cachorros latiam de pé junto ao tronco do gigantesco tamarineiro. Das campanas que fez para tirar foto da burra-de-padre que passou a dar volta à meia-noite em redor da matriz, depois que o padre Pedro, apavorado com o monstrengo Zebio, jogou água benta, correu e fechou as portas da igreja e o monstro foi enterrado sem a extremunção, aos prantos da Lalá. Sem esquecer das fotos do lobisomem Chico Ensebado, que com uma aberração horrenda, antes de aparecer na noite de lua cheia, para amedrontar os madrugadores, sumia na copa dos frondosos benjamins que perfilavam ao pé das calçadas, pela Av. Dom Lino, a espera para adentrar na casa das virgens. E assim, o Nêgo Leudo foi assassinado, batendo uma foto de uma jovem às ocultas de um telhado. O sonho do Nêgo Leudo era bater a foto da belíssima Tânia do Ray Torres, do Papai Noel, defronte da Catedral de Notre Dame, do túmulo do famoso Elvis Presley e do epitáfio do General Cordeiro Neto, no Cemitério São João Batista de Fortaleza. Mas todas as fotos se foram com os seus restos mortais. E como um feito histórico, num brado memorável, em homenagem ao Nêgo Leudo, na Praça da Lagoa da Caiçara, lanço o monumento do fotógrafo Lambe-lambe, para a história antropológica, cultural e social do lambe-lambe da terra de São Bernardo das Éguas Ruças.


Airton Maranhão (in memorian)

.Originário de Russas – CE. Formado em Direito pela Universidade de Fortaleza – Unifor, advogado militante da Comarca de Fortaleza, e romancista. Livros publicados: Deusurubu, Admirável Povo de São Bernardo das Éguas Ruças. Romances: A Dança da Caipora, Os Mortos Não Querem Volta e O Hóspede das Eras. Membro da ARCA – Academia Russana de Cultura e Arte.

Airton Maranhão (in memorian)

DEIXE O SEU COMENTÁRIO

Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não representam a opinião da TV RUSSAS. É vedada a inserção de comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes ou violem direitos de terceiros. TV RUSSAS poderá retirar, sem prévia notificação, comentários postados que não respeitem os critérios impostos neste aviso ou que estejam fora do tema da matéria comentada.

REDES SOCIAIS

  • Facebook
  • Twitter
  • Soundcloud
  • Youtube

©2009 - 2024 TV Russas - Conectando você à informação

www.tvrussas.com.br - Todos os direitos reservados