COLUNISTAS / AIRTON MARANHÃO (IN MEMORIAN)

PICIRICA - O FALSO ALEIJADO

Airton Maranhão (in memorian)

11//2/22/1

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História fantástica, mirabolante e misteriosa dos filhos de Russas, partindo do cordão umbilical, da pia batismal ou do montículo fúnebre, daria para escreve por uma gigantesca escadaria esculpida nas águas do Araibu, subindo pelo Tabuleiro dos Negros até a finitude do céu. Porque, incrivelmente, numerosas e estranhas estimulam as mais belas criações narrativas para escritores, artistas e poetas. E a do Picirica, russano analfabeto, embrilhantinado que usava blusão de couro, topete, sapato bicolor e só andava com um palito na boca, cigarro na orelha e caixa de fósforos na mão, é sobrenatural e exótica. Picirica era um sujeito hipnótico, cheio de léria, elegante e educado. Comentava política, música e artes culturais. Era fã do cantor Bienvenido Granda e caminhava no ritmo do mambo, da rumba e da gafieira. Picirica, simplesmente, quem sabe o nome de batismo desse tio do famoso Valdivino. Amigo do Fon-fom, Goía, Gasolina, Pé-De-Chumbo, Timá da Gibiril etc. Picirica vivia de flozô, de bom vivant no bar-soçaite do Vicente Silva, na coaça da Eufrozina e no Pavilhão do Antenô, café-soçaite dos boêmios tradicionais da cidade. Estranho, esquisito, magro, pobre, negro, boêmio, crítico como Zé do Canário, Velho Têlha e o leiloeiro Rantizau. Morava na Vila Gonçalves, perto da casa do veredor Orsete Leão. Entre o presságio e o agouro  era o gênio da censura: “Eu sei quem roubou a mina de paralelepípedo do mendigo Zé Temóteo.” E a debulhar o terço dentro do bolso, continuava: “Sei quem foi o padre que vendeu a padroeira de Russas.” Supersticioso como os primitivos se dividia por um lado, disforme e grotesco, por outro, terrivelmente cômico, bufo e animalesco, quando por vez, tragicômico, num contraste entre o sublime e o pavoroso. Era fingido, petulante, boçal, hilariante e sem graça. Participou de cultos faustosos e rituais hipnóticos com o macumbeiro Roseno. Mesmo sendo boa praça, com seu jeito folgado, cheio de cacife, nos tempos do playboy, cafajeste e cafetão da fofoca, batia na fuampa Ceguinha como o rabo-de-burro Ivan Paiva. E a imitar Jorginho Guinle: “Amei Baby Pignatari seus felás-da-mãe!” E farofava vantagem: “Eu botei para correr o Cabo Guedes!” Com veneno nos lábios, dizia: “Dancei o bumba-meu-boi de Dona Rosário.” Picirica, imaginoso anedotário, gigolô do lengalenga, lero-lero e da mangação, como crítico irreprimível, era infernal. “Sei para que o padre Valério deu o revólver de marca alemão ao Zé Leudo do Chico da Teté.” E alertava o dono do cinema 5 de Junho. “Marcondes, não dê esmola na missa do padre Valério.” E ao moleque Piru: “Se pegar cavalo-de-crista, tome benzetacil.” Perguntava para o Tonico Sacristão: “Por que o padre Pedro demoliu os altares-mores da igreja matriz?” E indagava: “Por que proibiu que a banda de música tocasse na procissão e no leilão?” Continuava o intelectual galhofeiro: “Ô padre safado, nazista, sem-vergonha e besta!” Tabica, amante do bordel e da cafetina, fino raparigueiro, adorava o lupanar do Mário Preto. Dançava gafieira, bolero e tango. Seguia o prefeito da cidade que freqüentava a coaça de Russas. O malandro fantasioso da troça e da gaiatice gabava-se à lábia do motejo e da fanfarra: “Ô prefeito valente, afobado e besta!” Sirigaita, quenga, catraíra, cutruvia de chatô e da zona do baixo meretrício se identificava com o boêmio, cachaceiro e mulherengo. Desocupado no desmantelo da gandaia e malandragem, marretava Tio Joel, dançava no baile do Pipiu e raparigava no cabaré da Dona do Quinquim. Mas de repente sumiu de Russas e numa quitinete ao lado do Parque das Crianças, em Fortaleza, fez morada. E foi flagrado por Robert Gondin, funcionário da Gás Butano. Por José Vandik de Carvalho, que trabalhava na construção do Castelão. Pelo Zé da Onça, Farrista, Bombom, Dois-Dente e Oviedo. Também fora visto pessoalmente por este articulista na sua transformação de mendigo aleijado, pelas ruas de Fortaleza, de repente surgia o Picirica vestido com a camisa pelo avesso, assombroso, com os braços retorcidos, postos para os lados, com os dedos da mão abertos. O bicho-monstro mancava com as pernas tornas e a boca aberta. Revirava e tremia os olhos de zumbi. E a balbuciar uma linguagem ininteligível estendia um imenso chapéu velho no escárnio de sua breguice. E no terror daquela galhofa, por morder bilioso a língua e a gengiva na loucura de sua pelintrice, mostrava a marca-de-sangue a descer pela boca: “Uma esmola pro filho de meretriz!” Não poderia ser o Picirica! Não era aleijado! Não era filho de prostituta! Mas esmolava no disfarçar de um aleijado horripilante. Tacanho, maligno e cínico no escárnio de uma aparência assustadora de epiléptico em convulsão, babava mendigando: “Uma esmola pro pobre aleijado!” Picirica, sem pieguice, enganava do besta de carga ao rico intelectual. Blasfemo malandéu. Depois de virar o demônio pelo avesso no artífice do riso galhofeiro, mangava da desumanidade de sua própria rabugice: “Ô povo otário, abestado, piedoso e besta!” Mas não custou muito para se descobrir a farsa do malando. Quando o chapéu estava cheio de grana, ele enrolava, botava dentro do blusão, demorava um pouco, chorava, benzia e agradecia a Deus. Depois saía arrastando as pernas de forma prosaica como um aleijado assustador. Que maldita farsa! Que malandro temerário! Na outra rua havia um boteco e nos fundos, jogava-se bozó, pif-paf e roleta. Ali, Picirica adentrava, andando normal, bonzinho e são. Os boêmios ao vê-lo anunciavam: “Chegou a grana!” E o dono do bar atiçava: “Ola a cachaça do aleijado!” O bancador da roleta instigava: “Deu o preto dezessete!” Picirica na bebedeira orgíaca da farra contava a grana na mangofa dos dementes. Quando perdia tudo no jogo e na embriagues, novamente pelo inverso, na faceta da deformação terrível, volvia-se na penúria do falso aleijado: “Uma esmola pro filho de meretriz!” Se não fosse pelo dom da malandragem, Picirica, com a originalidade de imaginação, bem que poderia ter feito algo no drama da vida humana em busca da verdade e dos ideais.

 

 

Airton Maranhão
Advogado e Escritor
Membro da Academia Russana de Cultura e Arte – ARCA

Airton Maranhão (in memorian)

.Originário de Russas – CE. Formado em Direito pela Universidade de Fortaleza – Unifor, advogado militante da Comarca de Fortaleza, e romancista. Livros publicados: Deusurubu, Admirável Povo de São Bernardo das Éguas Ruças. Romances: A Dança da Caipora, Os Mortos Não Querem Volta e O Hóspede das Eras. Membro da ARCA – Academia Russana de Cultura e Arte.

Airton Maranhão (in memorian)

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