COLUNISTAS / AIRTON MARANHÃO (IN MEMORIAN)

ESTÁCIO E O CARNAVAL DE RUSSAS

Airton Maranhão (in memorian)

11//2/07/1

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Quando se mistura política com carnaval, esse acasalamento de refletores e serpentinas assemelha-se muito a um espelho oculto que não reflete a máscara do folião que brinca distraído, enquanto a urna cega não evoca o falso poder político da mais vergonhosa e odiosa arte de burlar a disputa para a glória do voto e de títulos não receptivos, como ocorreu em Russas. E aqui, não ouso discorrer em lágrimas a lavratura dessa sentença executória e, inatingível, que findou a mais tradicional festa do país, o carnaval, principalmente o carnaval de Russas, em 1986. E no cerrar dessa cortina, sem esperança de um dia tirar esse luto e por o vestido de núpcias das escolas de samba nos desfiles que iluminaram a Av. Dom Lino, resta somente escutar o estridente repenique do Mestre Amaury, em frente à Bateria nota 10, da Escola da Monsenhor, como lembrança da escola campeã em 76, 77 e 78. Lembrando que em plena seca do 15, nossa atual Av. Dom Lino chamava-se Rua das Flores, com uma iluminação a querosene de lampião, instalada nos postes, com uma belíssima chama de cor azulada, como se um gigantesco vaga-lume clareasse a noite no contraste da lua cheia com o brilho ofuscante das estrelas. Nem mesmo o prefeito da municipalidade, Coronel Araújo Lima, acreditaria que a Rua das Flores seria no futuro o palco principal de desfiles de escolas de samba, como as que exaltaram para todos os séculos o carnaval de nossa terra. Quando vez por outra, a infernal batucada do Monteiro da Caixa Econômica era quem desfilava pela D. Lino. Mas, numa tarde, casualmente no período momesco, o pessoal da Monsenhor, conhecida como a turma do Estácio ou Estacim, como o chamávamos, encontrava-se concentrada na calçada do Sandu, isto não muito distante da década de 70, com seus componentes: Bão, Welser, Zilzo, Jaime, Zeca, João Alberto, Mamá, Vanderilo, Carlos da Joana, Zé Finim, Luiz Orlando, Gilberto Rodrigues, Zé Leudo, Wilson Serenata e este articulista, quando de repente ouviu-se uma gritaria com um bater insistente de chocalho, bombo, prato de músicos, tarol e apitos, vindo das bandas do cemitério. Para nosso espanto, eis que surge numa frenesi dos deuses da felicidade e do prazer, entre gritos histéricos, gargalhadas sardônicas e lágrimas de alegria, coberto de honra e aureolado de fantasia, o garboso e sombrio negro Manoel Pipiu, descendo o morro do Tabuleiro dos Negros, com o seu popular apito, arrastando uma imensa multidão de negros enlouquecidos no mais extremo delírio da raça humana. Velhos, jovens, mulheres e crianças acompanhavam o flamejante bloco do Pipiu a desfilar pelas ruas, num festejo alucinado de encanto e beleza, loucura e esplendor de idiotas, bêbados e foliões. Confesso que fiquei enregelado com aquela fantástica revelação de alegoria do grotesco e do absurdo cômico das fantasias vulgares da alegria. Como dizem que as colunas do Céu têm seu pé no abismo, além de ficarmos encantados, eufóricos e perplexos, lembrei num grito do poeta Castro Alves: “Albatroz! Albatroz! Dá-me estas asas.” E como o demônio já estava solto na tentação, tiramos o capuz do monge e caímos na folia. Com os passos intransponíveis nos mais invisíveis limites da alegoria humana, Estácio começou a tecer a folgança como uma fada tece o amor impossível entre o rouxinol e a rosa. E quando do retorno do bloco ao morro do Tabuleiro dos Negros, despidos dos ornamentos da ilusão e da fantasia carnavalesca, Estácio bradou: “Vamos fazer o nosso carnaval!”. Gritamos de alegria e comemoramos: “Vamos fazer um carnaval com escola de samba e tudo como as do Rio de Janeiro.” Assim, pela primeira vez, ao contemplarmos aquele milagre carnavalesco e acompanhar aquele bloco que como um museu preservou a memória do nosso carnaval, o negro Manoel Pipiu nos deu alento à criação de uma escola de samba para desfilar na Av. Dom Lino. E como confessores desse fato criamos e fundamos a primeira escola de samba de nossa terra natal, a Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos da Monsenhor João Luiz. E o Estácio, como presidente, compôs o 1º Samba-enredo de uma escola de samba em Russas. Depois surgiram: Os Aluntes, Os Gaviões e finalmente, a Império Russano. Originando, assim, o carnaval do nosso município. Estácio ficou conhecido como o mestre absoluto do carnaval russano. E com tantos títulos de nossa escola tri-campeã e bateria nota 10, não quero exaltar nenhuma escola, todas foram vencedoras, todas jorraram suas fontes de suor e lágrimas no asfalto coberto de flores, nobreza e alegria. O mais tenebroso é acreditar que a política de Russas, que se entredovora na feitura de suas poções venenosas, crer-se poderosa e vitoriosa, fiel e imunda, indecente e impudica, ainda vende-se num exemplo monstruoso de voto antropófago, como a que sepultou nossas escolas de samba, onde os carros fúnebres ainda conduzem pela D. Lino, o esquife de nossas fantasias, com a última memória em pompa. E o Estácio que fez o carnaval com Alegorias e Adereços, Comissão de Frente, Harmonia e Evolução, Rainha da Bateria, Bateria da Escola de Samba, Fantasia do Carnaval, Porta-Bandeira e Mestre-Sala, Samba-Enredo, deu alegria ao nosso povo com o melhor carnaval do interior, com título de honra para a nossa gente, e arrastou multidões do vale jaguaribano, da capital e do mundo afora, para prestigiar, participar e assistir o nosso carnaval. Nunca recebeu uma saudação nem uma medalha de Russas, como se as coroas de verbenas tivessem ornado seu velório e as heras dos túmulos encoberto sua memória. Como renascer nossos foliões carnavalescos? Não posso chorar! Tenho que rir para quem tenta lançar essas brasas diante do menosprezo visível, cristalino e tão trágico. Estácio, a política de Russas é uma fantasia de carnaval que algum bêbado deixou esquecida no asfalto. Por isso eu canto o seu Samba-Enredo. “Já vem chegando a turma boa,/da monsenhor João Luiz./ Que beleza, é olhar os seus passistas, /desfilando na avenida principal./ É monsenhor João Luiz,/ o tema da nossa canção./ É monsenhor João Luiz,/o guia do meu coração./...”

 

                                                                              Airton Maranhão

                                                                                         Advogado e Escritor

                                               Membro da Academia Russana de Cultura e Arte – ARCA

Airton Maranhão (in memorian)

.Originário de Russas – CE. Formado em Direito pela Universidade de Fortaleza – Unifor, advogado militante da Comarca de Fortaleza, e romancista. Livros publicados: Deusurubu, Admirável Povo de São Bernardo das Éguas Ruças. Romances: A Dança da Caipora, Os Mortos Não Querem Volta e O Hóspede das Eras. Membro da ARCA – Academia Russana de Cultura e Arte.

Airton Maranhão (in memorian)

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