COLUNISTAS / AIRTON MARANHÃO (IN MEMORIAN)

O BOÊMIO TABICA

Airton Maranhão (in memorian)

11//2/01/0

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Se existe no ser humano uma voz de harmonia musical, oculta no mistério dos sentidos que somente aflora por acaso, destacamos com tal magnitude, extraordinariamente, um russano predestinado com esse dom do destino, que fez explodir do silêncio auditivo com inesperados acordes a voz do cantor Waldick Soriano, considerado um dos mais renomados cantores brasileiro. Esse inacreditável imitador, filho de Russas, tratava-se do boêmio Tabica, sujeito magro, moreno de estatura mediana, sorriso fácil, andar faceiro, de malandro, com calça boca de sino, camisa volta-ao-mundo e brilhantina glostora no cabelo. Afamado dançarino de bordel, farejador de amor impossível, sonho de nobreza e burguesia. Tabica, no vício da embriaguez, bebia como um mama-na-égua, puxava fogo com bafo de onça, com cantadas de ladainhas de igreja e conversa de pé de balcão. Oculto, por trás da meiota e do ray-ban-verde, de olhos nos decotes cobertos com lenço negro, dava “psiu” paras vitalinas metidas a bestas que passeavam de mãos dadas na praça Monsenhor João Luiz. O demagogo rabo-de-burro, por ser pobre, malandro e farrista com fama de dançarino de gafieira e gigolô de fuampas, no sub-mundo da coaça de Russas, viciado no jogo do bicho, filão de bebida, cigarros e tira-gostos, namorador de chauffeuses de fogão, tido como uma porcaria de negro, sem ter onde cair morto, distante do cabo da enxada, dos terços e dos rosários, mesmo repudiado com beliscões, muxoxos e insistentes rabissacas, se sentia um urubu-rei. Mesmo para quem recusou aposentar velhinhos no funrural, vender espanador na porta das casas, preencher rifa das vitalinas, Tabica não poderia passar despercebido para a sociedade russana, porque no interior, principalmente, Russas, que era uma cidade pequena, todo mundo se conhecia, do pano verde da sinuca do Vicente Bessa, aos sermões ferinos do padre Valério; da fuampa Espingarda de saia justa lascada atrás ao médico-prefeito metido a valente e arruaceiro; do pistoleiro Nilson Cunha ao monstro Zebio; do Tremendão que usava sapato cavalo de aço com virola na ponta e calça boca de sino santrope ao mentiroso velho Moacy da bodega. Mas Tabica não passava de um bêbado fidalgo para o Tio Joel que pagava bebida, tira-gosto e tocava violão para ele cantar suas músicas prediletas. Depois de imitar o homem engolindo fogo para adquirir uns trocados, após uma bebedeira, contam as más línguas, que Tabica ao chegar numa bodega, revelou que estava apaixonado por uma mulher casada, e ao esboçar um gesto para tocar numa flor que pendia pela janela da humilde bodega, naquele exato momento, ao tocar na  radiola o bolero “Paixão de um Homem”, cantado por Waldick Soriano, uma força estranha evocada pelo pensamento de intensa paixão, deixou-o numa meditação transcendental. E como a música fala mais alto que as outras artes, de repente, como num toque de magia de Ondine, Tabica, pela primeira vez, cantou a canção “Paixão de um Homem” imitando perfeitamente, com o mesmo gesto e voz, o cantor Waldick Soriano. Muitos pensaram que era o som da radiola. Mas, dessa vez o bodegueiro não puxara o braço para o velho compacto feito de cera, tocar. E por acaso dos pensamentos mais altos ou coincidência dos eleitos, no espanto de todos, Tabica cantou divinamente bem, imitando perfeitamente o Waldick Soriano. E pela primeira vez em sua vida recebeu aplausos e abraços ao explodir com aquela voz inconfundível do mais afamado cantor deste pais. Como vivia de lorota, lengalenga, conversa mole, cantava, bebia, comia de graça e de Zé-mané, tirou o pé da lama, das bodegas e botequins, felicíssimo ao descobrir o tesouro de sonhar com sombra e água fresca, dinheiro, fama e garotas. Naquele reinado, jogou fora as pules do bolso, a lambedeira do cós, o cordão de miçanga do pescoço, para abandonar as chauffeuses de fogão. E de um dia para o outro virou um fenômeno, passou a usar terno, óculos e chapéu preto, e tomar cachaça Pitu, imitando o cantor baiano. Tabica que do pobre negro besta, paparicador de fuampas e de flagrar barata-de-igreja alcoviteira de namoro, ficou chique, superelegante, bonito, bem-educado, famoso, carismático cantor galã no estrelato de abraçar e beijar as fãs e namorar mulheres sofisticadas. Com tanto sucesso, na performance do cantor brega, o namorador de moça donzela gravou um disco na voz do Waldick, que surpreendeu o país. A sua imagem pública mudara com a perseguição das fãs, dos amigos e dos boêmios para ouvi-lo cantar. Tabica desconhecendo a sua pessoa por trás do mito, não mais hesitava em acompanhar os barões nas farras, os falsos amigos que o acordavam a qualquer hora para reiniciar a boemia. Assim, no auge da fama apareceu todo o tipo de mulher para se apaixonar, não por ele, mas pelo astro que se tornara coberto de amigos, de fãs e sucesso. Mesmo cercado de mulheres lindas e solteiras, o sedutor showman, como um rabo-de-burro romântico, na orgia da ressaca e dos sonhos, fugiu com a mulher do Quêquêci. Mas, com toda glória por imitar Waldick para burguês e magnatas, muito longe de adquirir um bangalô para o seu sossego, sentiu-se vazio, e na solidão amargou sozinho e doente no desenfreio da vida boêmia pela insistência de imitar o autor de “Tortura de Amor”. Tabica conheceu a desgraça e o fim do astro famoso. Pobre, novamente com a fama de rabo-de-burro, o afamado dom-juan, num porre cantando “Paixão de um Homem” desapareceu de Russas para o desespero das chauffeuses de fogão e dos velhos boêmios.
Airton Maranhão

                                                                                              Advogado e Escritor
                                                               Membro da Academia Russana de Cultura e Arte – ARCA

Airton Maranhão (in memorian)

.Originário de Russas – CE. Formado em Direito pela Universidade de Fortaleza – Unifor, advogado militante da Comarca de Fortaleza, e romancista. Livros publicados: Deusurubu, Admirável Povo de São Bernardo das Éguas Ruças. Romances: A Dança da Caipora, Os Mortos Não Querem Volta e O Hóspede das Eras. Membro da ARCA – Academia Russana de Cultura e Arte.

Airton Maranhão (in memorian)

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