COLUNISTAS / AIRTON MARANHÃO (IN MEMORIAN)

O SOLDADO CRICA

Airton Maranhão (in memorian)

11//2/10/0

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Ao perambular pelas ruas da cidade de Russas, principalmente pela Dom Lino, evoco a imagem viva do protagonista Raimundo Tibolica no suplício cruel de torturas físicas e psicológicas, quando fora conduzido preso num dos mais ignominioso cortejo de humilhação, pancadaria e desrespeito à pessoa humana. Raimundo Tibolica sofreu mais que isso, numa ação inimitável de atrocidade, ignorância e abuso de autoridade praticada pela polícia do destacamento de Russas, que causava temeridade ao comando do famigerado Sargento Sena. Que com todas as injustiças e agressões, violou as formas mais elementares da lei ao efetuar a prisão de um ser humano, ainda mais, inocente. Pois o acusador do crime não indicou testemunha ocular de acusação ou de defesa, e não foi indagado ao acusado se tinha defensor. Além do mais, a vítima estava delirando ao balbuciar no ouvido do Sargento Sena: “Foi o Tibolica.” Isso fez gerar o maior crime de tortura jamais perpetrado por policiais cearenses, com a prisão do Tibolica. Tudo começou com o Crica, irmão do João Guilherme, conhecido viado dos pássaros, por caçar e vender passarinho. O soldado de polícia Francisco Guilherme, de alcunha Crica, baixo, magro, metido a boçal, por fazer parte da corporação policial de Russas, numa ronda, encontrou caído na coxia, bêbado, o sapateiro Pedro Pereira, e sem nenhum motivo, só por malvadeza, desferiu vários pontas-pé no consertador de sapatos. Nisso, alguns meses depois, com a vitória de Jânio da Silva Quadros, “O Homem da Vassoura”, ao derrotar o Marechal Henrique Teixeira Lott, a Presidente da República, em 1960, houve uma grande passeata pela Rua Dom Lino, onde cada um, com uma vassoura varrendo a pista, acompanhava a multidão com Dona Selva, mãe do Manuel do Peba, na frente, dançando com uma enorme trouxa de roupa na cabeça. Todos  eufóricos, varriam e cantavam a música da campanha “O homem da vassoura vem aí...”, a caminho do Sindicato Rural de Russas, que ficava por trás do posto do Helder Moreira, para a grande festa da vitória. Como naquela época o coronel João de Deus era prefeito de Russas e por ser presidente do Comitê da Antiga União Democrática Nacional –UDN, forneceu, para comemorar, um gigantesco barril de coquetel de bebidas alcoólicas, que para beber se usavam canecas. E ao chegar bêbado à festa, o sapateiro Pedro Pereira foi surpreendido pelo soldado Crica que estava a paisana, e lhe deu um empurrão e um chute na bunda. Calado, o sapateiro saiu da festa e ao voltar com uma faca pequena e muito afiada de cortar sola, observou que Crica ainda estava lá, e armado de sua faca de sapateiro, em plena folia, desferiu uma mortal e sorrateira facada no abdome do seu desafeto, a varar a barriga de ponta a ponta do espinhaço. As vísceras sacaram fora. E para não caírem o militar saiu cambaleando em meio à multidão embriagada e festiva, segurando o intestino em retalhos. O tumulto foi geral. Em frente ao Sindicato Rural estavam fazendo a encanação do esgoto de Russas, e Crica ferido, saltou a vala a rolar pelo chão com as vísceras caindo, misturadas com areia e sangue. De imediato foi transportado para inaugurar o Posto do Sandu, na Rua Dom Lino, sendo socorrido pelo médico  plantonista, Dr. Inácio Simões Filho. Com ferocidade, a polícia pôs-se às armas, e o infame Sargento Sena, sanguinário defensor da ordem e da lei, com toda sua cólera, jurou prender o facínora, nem que tivesse de arrombar todas as casas da cidade. No leito operatório, o temível Sargento Sena indagou quem tinha desferido aquele golpe. Delirando com a mente abrasadora, na ânsia aguda da morte, Crica balbuciou: “Foi o Tibolica”. Raimundo Tibolica, era um pacato comerciante do mercado público de Russas. Sargento Sena, tendo a indicação do criminoso por denúncia da própria vítima, com o olhar a chamejar rancor e vingança, reuniu a soldadesca, e pela 21h30min, dirigiu-se à residência do acusado que ficava na Rua Bruno Epaminondas, perto do cinema do Marcondes Costas. “Abra assassino!” Com gritaria e chutes na porta despertou o comerciante em pânico, que arrebatado à força de dentro de casa, pelo resto dos soldados, começou a apanhar. Logo as ruas se encheram de gente numa correria infernal. “Você matou o Crica!” E numa cena jamais vista o inocente Raimundo Tibolica foi preso e conduzido pelas ruas da cidade aos empurrões, tapas e pontapés, num cortejo de pancadaria, tortura e agressões físicas, diante dos olhares de espanto e pesar do povo russano, que assistia das portas e calçadas o desfile macabro dos espancamentos e acompanhava até o quartel. Tiboloca continuava negando que era o assassino. José Nogueira, irmão do famoso advogado Antônio Nogueira, ao pedir para não surrar o coitado, foi ameaçado de prisão pelo Sargento Sena: “Eu prendo você e seu irmão advogado!” Seu José fechou a porta. Na cadeia, a polícia além de fabricar acusações com sarcasmo de carrasco insensível, forçava: “confesse, você furou o Crica!” Tibolica quase a desfalecer, jurava inocência. No dia seguinte, depois de uma noite de agonia, para o vexame da polícia e profunda indignação dos russanos, o sapateiro Pedro Pereira, apresentou-se espontaneamente e confessou o crime. Banido pela cisma do destino, sem mais alegria e paz, como um Lúcifer expulso do céu, num sentimento de ódio, desprezo e descrença, por conseqüência da prisão, tortura e humilhação, Tibolica sumiu para residir em Mossoró e nunca mais pisou em Russas. No Sandu, ao se recuperar, Crica tomou uma coca-cola e com poucos dias faleceu com o mistério não decifrado porque denunciou o Tibolica.
Airton Maranhão


Advogado e Escritor
Membro da Academia Russana de Cultura e Arte – ARCA

Airton Maranhão (in memorian)

.Originário de Russas – CE. Formado em Direito pela Universidade de Fortaleza – Unifor, advogado militante da Comarca de Fortaleza, e romancista. Livros publicados: Deusurubu, Admirável Povo de São Bernardo das Éguas Ruças. Romances: A Dança da Caipora, Os Mortos Não Querem Volta e O Hóspede das Eras. Membro da ARCA – Academia Russana de Cultura e Arte.

Airton Maranhão (in memorian)

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