COLUNISTAS / AIRTON MARANHÃO (IN MEMORIAN)

O MACHADO DO PIRRITA

Airton Maranhão (in memorian)

11//2/02/0

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Assim como a ampulheta foi inventada antes mesmo do vidro, que com esse invólucro transparente completou o uso primitivo do relógio de areia, sem modificar a originalidade, comprova que muita coisa somente mostra a beleza da imagem e do absurdo de sua existência quando vem à tona a indumentária ideal de cada ser, belo ou feio, melancólico ou terrível. Coisa parecida assim aconteceu em Russas, numa história interessante, grotesca e irrisória, de uma criatura esquisita que parece não ter tido infância nem adolescência, com a triste impressão que mais parecia surgida da atmosfera terrestre primitiva. Tratava-se de Francisco Maciel da Silva, conhecido por Pirrita, que sofria de ataques de nervos e silêncio cemiterial, que por vezes explodia em prantos lastimosos e de repente ficava triste como o cisne no pôr-do-sol e pegava o violão do Gerardo Madalena e não cantava, só fazia assobiar as músicas. Moreno, baixinho e cambota, sonso, trágico e cômico, neurótico e zuadento, craque de bola, com ar de inocente, ruía as unhas, mastigava pétalas e só chamava as pessoas de pessoa. Num espetáculo sobrenatural passava a noite a amolar o machado. De madrugada, vagava pela cidade com o machado no ombro, maléfico a simbolizar a mortandade da natureza. De logo assobiava ao som do saltério, invento primitivo de Jubal, ao encontrar uma árvore frondosa, olhava para ela e ajoelhava-se dedilhando as contas do rosário. Com os olhos no céu, oferecia a reza ao seu finado pai, batendo os beiços trêmulos. O canto da passarada silenciava com o retumbar enlouquecido do machado do Pirrita. De raro merecimento, louvo esse mórbido ser, adulterado artificialmente de sua originalidade humana. Assim, quando a árvore caia, nos seus lábios iluminava-se um sorriso sarcástico. No semblante os traços encantatórios dos seres malvados, que fez o Pirrita erradio, para quem fora craque de bola e criador de canário, sem superar os seus ataques de nervos, encontrou pela frente o fim do sonho de ser jogador de futebol. Numa Olimpíada do Vale Jaguaribe, no final da partida, jogando Russas contra Morada Nova, nosso time só precisava de um gol para se classificar para ser campeão olímpico. Pirrita driblou o time todo, traçou o goleiro, quando o finado Pinto gritou: “Faz o gol feladaputa!” Pirrita, sozinho, quase debaixo das traves, ao invés de chutar pro gol, pegou a bola, e chorando saiu correndo para onde estava o Pinto, jogou a bola no chão e bradou: “Pinto, a minha mãe não é puta não, Pinto.” Quase enlouquecemos. Perdemos o jogo e Russas ficou pasmada com aquele acontecimento. Daí por diante o Pirrita nunca mais foi o mesmo, desmiolado, com tiques, gestos e manias, farofando besteira como um mama-na-égua, trocou a bola pelo machado. Cheio de manias e cacoetes começou a carregar pedra de calçamento para aterrar o Poço do Velho André, entupiu o cacimbão do matadouro velho, cortou suas aroeiras e pau-d`arcos. E por todo o nosso município cortou oiticicas do seu Deco, ipês do Marcondes Costa, árvores do Patronato, cajazeiras do Boanerges, tamarindeiro do João da Duca, cajueiros do Valfrido,  carnaubal da velha Elisa, laranjeiras do padre Valério. Cortou árvores das Flores à Ilhota. Destuiu campos e florestas. E toda à tardinha ia para o cemitério e se deitava na laje do túmulo do falecido pai, e em conversa apoquentada com o finado, amaldiçoava a bola e o finado Pinto. Pirrita, num falatório sem fim, com o seu maldito machado, cortou árvores seculares e devastou Russas por causa de uma bola e abirobado morreu epopeico.

Airton Maranhão

                                                                                 

Airton Maranhão (in memorian)

.Originário de Russas – CE. Formado em Direito pela Universidade de Fortaleza – Unifor, advogado militante da Comarca de Fortaleza, e romancista. Livros publicados: Deusurubu, Admirável Povo de São Bernardo das Éguas Ruças. Romances: A Dança da Caipora, Os Mortos Não Querem Volta e O Hóspede das Eras. Membro da ARCA – Academia Russana de Cultura e Arte.

Airton Maranhão (in memorian)

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