COLUNISTAS / AIRTON MARANHÃO (IN MEMORIAN)

SESSENTA DA ROSÁRIA

Airton Maranhão (in memorian)

11//2/20/0

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Muita gente, quase a um passo da extinção, ainda acredita em coisas fantasiosas que aparecem do nada. E que sem nenhuma prova concreta, de ser uma lenda, repercute como se fosse verdade. Nessa arrumação engenhosíssima, encontra-se incorporado Assis da Rosária, mais conhecido como Nego Sessenta. Esse fato curioso ocorreu no ano de 1960, quando surgiu em Russas um ditado assombroso de que todo negro iria virar macaco. Assis da Rosária, como diz o matuto, era um negro bem preto, da cor de breu, e só tinha de branco os dentes, a sola dos pés e a palma das mãos; os olhos tornaram-se riscados de sangue, por causa da cachaça. Certo dia, ao ouvir aquele boato horripilante: - Sessenta, à meia-noite, nesse ano de 1960, negro preto assim como você, vai virar macaco! Assis da Rosária abriu a boca, passou a mão no rosto, nas pernas, e deu um grito espasmódico. - Não diga isso não, Dr. Estácio! Daí então, com a aproximação dos dias, ficou abirobado de doido com aquela terrível notícia de que todo o negro, de deu em deu, como visagem do outro mundo, misteriosamente maldito, depois da meia-noite, iria virar um assombroso macaco. O negro ficou mole, deixou de ser valente e boçal. Não era mais afoito. Sem amigos e sem mocreias, esqueceu o chamego, a galhofa, a cachaça, as fruticas e a ladroagem. De tanto pânico e dordolho não dormiu mais à noite. Sua vida virou um inferno, um fiasco. Logo ficou assombrado de tanto pavor aos primatas. Abandonou a casa, os parentes e o emprego. Como meliante, perdeu a troça, a força e a coragem. Em represália, se escondeu numa moita e se amarrou dentro de um saco. – Sessenta, à meia-noite, nesse ano de 1960, negro preto assim como você, vai virar macaco! Não diga isso não, Zé do Canário! Nêgo Sessenta procurou um doutor para mudar o rosto. Trajou-se de palhaço, cortou e pintou o cabelo. Triste, muito confuso, transmudado numa outra imagem, trocou a farpela e passou cal pelo corpo, apodrecendo como um desgraçado. Tentou virar lobisomem, fugir num disco voador e contratar o pistoleiro Nilson Cunha para numa tocaia atirar no seu fantasma. Assim, com medo da terrível besta, ficou horrendo e escabroso. Disfarçado, passou a usar um sombrio terno preto. Atanazou por ajuda ao prefeito Gerardo Matoso. Passou três dias ajoelhado frente à igreja, atemorizado com a besta-fera. Mudou a sua linguagem. Chamou o temível Cabo Guedes de escroto. Encomendou ao Antônio Cobrão o seu caixão de defunto e junto com o coveiro Jabatão, no cemitério, rezaram entregando a alma ao satanás para aquele demônio amaldiçoar a sua cor, benzendo-se para não virar macaco. Refugiou-se no Araibu, num profundo desgosto, depois de encomendar ao afamado macumbeiro Roseno, para tirar o catimbó daquela visagem, com medo da transformação. Perto da meia-noite se escondeu dentro de uma mala. No outro dia, Nêgo Sessenta sem virar macaco, assombrado, saiu da mala e se olhou no espelho como um bobo num festim macabro. Teve frio e estremecimento de mil açoites. Beliscou a face, arranhou as coxas e os braços. Meio grogue caiu na cachaça e na gozação do povo. Arrependido de tanta besteira e ignorância, com aquela bobagem, não mudou de cor e nem virou num bicho capiroto, dizendo: Nego Sessenta morre negro preto, mas não vira macaco!

 

                                                                                  Airton Maranhão
                                                                              Advogado e escritor
                                                   Membro da Academia Russana de Cultura e Arte – ARCA

Airton Maranhão (in memorian)

.Originário de Russas – CE. Formado em Direito pela Universidade de Fortaleza – Unifor, advogado militante da Comarca de Fortaleza, e romancista. Livros publicados: Deusurubu, Admirável Povo de São Bernardo das Éguas Ruças. Romances: A Dança da Caipora, Os Mortos Não Querem Volta e O Hóspede das Eras. Membro da ARCA – Academia Russana de Cultura e Arte.

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