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A natureza humana, por seu desafio, apresenta sempre criatura com grande talento que faz identificá-la por ação de coisa absurda e inacreditável a ser comparada com mistérios não identificados. Antônio Estácio de Sousa, homenzarrão espadaúdo, louro, de olhos azulinos e mouco, só falava alto. E na surdez, só ouvia com a mão no ouvido. “Filho de Osmira”, indagava. “Já leu Os Miseráveis de Victor Hugo?” Já doutor. “Estacim, meu filho, também já leu.” Sábio de muita cultura, admirava Da Vinci, Bach, Haendel e adorava a Marcha Fúnebre de Beethoven. “Sadira”, indagava à sua mulher. “Sabia que Beethoven era surdo como eu?” “Sousa, Beethoven perdeu toda a audição”. “É, mais o veio aqui é crânio ou não é Sadira?” E declamava Augusto dos Anjos, na calçada do Sandu para dr. Zé Martins, dr. Inácio, enfermeiro Róseo e para este escritor. Dr. Daltro Holanda indagava: “Dr. Estácio o que é a vida?” “A vida”, respondia ele. “É a ação da unidade altamente catalítica dos polímeros macros moleculares.” Ele brigou com a polícia na rua, mostrou o pau do Judas para as freiras do patronato e remodelou os santos das igrejas de Russas. “Não entende nada, do berço ao zero absoluto.” Insultava. “Beócio rasteja na unidade composta dos polígonos moleculares de uma esclerótica.” Colecionava quadros raros, oratórios antigos, moedas de ouro e de prata, crucifixos, colar de pérola, selo, fóssil e santo. “Nêgo Zeca, você é o protótipo da minha expansão recalcada.” “O véio é pesado?”, indagava ao Arilo. “É!”, respondia Aroldo. “Tem quem vá com véio?” “Tem não!”, retrucava Bertinho. “Estacim vai com o véio?” “Vai não doutor!”, finalizava o Bão. E toda vez que se embriagava tinha que ia buscá-lo para casa, ele atendia o meu chamado. Numa noite de porre no Carne Assada do Bigodão, no antigo Posto do Elder Moreira, ele disse que não tinha medo de nada, nem do cão do inferno. E ao ser desafiado que não teria coragem de trazer uma cruz do cemitério, ele disse. “Eu trago.” Fizeram uma aposta e passaram para ele o nome do finado, escrito num papel, que teria que trazer a cruz. Naquela noite fui buscá-lo, e ao encontrá-lo com dois pacotes de velas e várias caixas de fósforos nas mãos, eu disse. “Vamos doutor, dona Sadira está chamando o senhor.” Ele olhou para mim bem dentro dos meus olhos e perguntou. “Você tem medo de alma?” Tremendo, respondi. “Tenho doutor.” “Pois vamos ali que vou provar que não se deve ter medo de nada.” E me levou para o cemitério. Fiquei assombrado. Eu chorava baixinho, era um menino. “Acenda o fósforo e as velas.” E empurrou o portão, que se abriu. Parado, só ouvia o coração bater. “Vamos!” Gritou ele. E entre mausoléus, pisamos covas rasas e no final do cemitério ele olhou para o papel e pediu para iluminar os nomes constante nas cruzes. E de cruz em cruz, gritou. “É esta aqui.” Arrancou-a e botou no ombro. Depois, mais cinco, e entregou-me três. Saímos do descanso perpétuo. Eu flutuava de medo com as cruzes no ombro. No bar do Bigodão, ele jogou a cruz com o nome indicado no papel, em cima da mesa, e bradou: “Quem tem medo de alma?” Todos correram apavorados. Depois pegou cinco cruzes e jogou no cacimbão do cata-vento americano do Vicente Leite. A cruz do morto conhecido, no dia seguinte, devolveu ao cemitério. Dr. Estácio foi um dos maiores gênios que conheci em Russas.
Airton Maranhão
Advogado e escritor
Membro da Academia Russana de Cultura e Arte – ARCA
.Originário de Russas – CE. Formado em Direito pela Universidade de
Fortaleza – Unifor, advogado militante da Comarca de Fortaleza, e
romancista. Livros publicados: Deusurubu, Admirável Povo de São Bernardo
das Éguas Ruças. Romances: A Dança da Caipora, Os Mortos Não Querem
Volta e O Hóspede das Eras. Membro da ARCA – Academia Russana de Cultura
e Arte.
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